No pós-Lula livre, esquerda precisa reencontrar as ruas
*Igor Tadeu Camilo Rocha
Desde o último dia 8 de novembro, a saída do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva da cadeia, depois de 580 dias, tem sido objeto de muitos comentários. As comemorações, de um lado, conviveram com protestos contra o STF, devido à sua decisão quanto à prisão em segunda instância – que acabou por ter beneficiado o ex-presidente.
Proliferaram também a circulação de notícias falsas à decisão da corte, que iam de supostos milhares de criminosos que sairiam da cadeia em decorrência dela até sobre que aconteceria o mesmo quanto a condenados famosos.
Em termos de análise política, também muito há sido discutido. Neste mesmo blog, Rodrigo Ratier fez uma interessante análise indicando as possibilidades que o "Lula livre" trazem ao bolsonarismo: primeiro, por colocar, novamente, Lula e PT no centro das atenções, provocando o caos necessário para agitar de tempos em tempos a militância do atual presidente; segundo, o fato de que o ex-presidente pode também ser um fator que una, pelo antipetismo, uma base rachada de bolsonaristas e outros apoiadores.
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Aqui, no caso, pretendo levantar uma outra questão. O dia depois do Lula livre deve ou deveria também trazer questões sobre como a oposição ao bolsonarismo deverá atuar. Se mesmo enquanto o ex-presidente esteve na cadeia a pauta de sua liberdade não necessariamente unia a oposição, com Lula solto ela se esvazia. Da mesma maneira, um novo fôlego ao antipetismo – vindo também de agentes políticos da oposição, como de Ciro Gomes e seus apoiadores – também merece atenção.
Como ponto de partida, é necessário falar sobre a "autocrítica do PT". Porém, não a autocrítica que, no último dia 14, em Salvador, o próprio Lula rechaçou sua necessidade de acontecer.
Inclusive, contrariamente ao que diz grande parte do antipetismo dentro do campo político da oposição, ou mesmo de alguns eleitores do PT, vejo como acertada a fala do ex-presidente. Isso porque essa autocrítica específica a que se refere consiste, basicamente, na exigência de que o PT faça algum mea culpa público do seu envolvimento com a corrupção sistêmica do Brasil, mas não quanto aos seus outros erros.
A qual autocrítica do PT eu me refiro? Falo sobre a Resolução sobre Conjuntura, publicada, depois de aprovada, pelo Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores, em 17 de maio de 2016. Bem da verdade, ela sequer foi muito comentada, mesmo no campo da esquerda. Mas traz pontos interessantes à reflexão.
Um trecho que sintetiza bem essa autocrítica: "Esquecemos uma das lições mais relevantes da história brasileira, consolidada pelo PT em seus documentos dos anos oitenta".
Mas quais lições relevantes foram essas? A resolução responde com reflexão sobre a própria história do capitalismo brasileiro, marcado pela superexploração do trabalho e pela reprodução de estruturas arcaicas, altamente refratárias a quaisquer pequenos avanços em termos de direitos sociais e/ou diminuição de desigualdades.
Avançar contra isso só poderia acontecer, continua a resolução, com a construção de uma força política contra-hegemônica, pautada por ideias de justiça social, que limitassem poderes relativos dos grupos politicamente hegemônicos.
"Tal pressuposto deveria ter norteado nossos treze anos de governo", continua a nota em tom autocrítico, pois somente assim seria viável a "concentração de todos os fatores na construção de uma força política, social e cultural capaz de dirigir e transformar o país."
Em vez disso, o PT assume em sua resolução ter seguido uma outra direção:
"Confiamos na governabilidade institucional, a partir de alianças ao centro, como coluna vertebral para a sustentação de nosso projeto." Assim, os quadros do PT foram à condição de "reféns de acordos táticos, imperiosos para o manejo do Estado, mas que resultaram num baixo e pouco enraizamento das forças progressistas".
O resultado foi que: "A manutenção do sistema político e a preponderância excessiva da ação institucional acabaram por afetar fortemente o funcionamento do PT, confinado à função quase exclusiva de braço parlamentar dos governos petistas e reordenado como agremiação fundamentalmente eleitoral."
Esses trechos poderiam nortear as reflexões do "pós-Lula livre".
Em primeiro lugar, embora seja natural que o PT e outros partidos do campo progressista pensem e marquem suas posições contra o bolsonarismo em 2020, o erro de reduzir suas ações ao campo institucional poderá cobrar caro.
Isso porque esse discurso remete fortemente a uma referência que os partidos – e não somente o PT – não possuem mais no cenário político brasileiro.
A vitória de Jair Bolsonaro, em 2018, mostra, inclusive, que os partidos – ao menos na sua concepção e estrutura tradicionais – são prescindíveis, mesmo para se vencer uma eleição majoritária. Todo curso de ações precisaria ser pautado tendo em vista a realidade de desgaste da política partidária, característica de um cenário de irrupção da já problemática democracia liberal brasileira e de suas instituições centrais.
Um segundo ponto é relembrar "as relevantes lições da história brasileira" que a resolução diz que o PT esqueceu. Pensar além da política partidária ou a partir de suas características atuais deve, acima de qualquer coisa, partir das realidades históricas brasileiras.
Dito de outra maneira, se faz necessário ao campo progressista adaptar seus discursos e (re)construir sua relação com uma população descrente com a política partidária, dentro de um dos países mais desiguais do mundo.
Suas estruturas, características, grupos de poder e diversos outros aspectos devem ser tomados em conta, reestruturando o próprio vocabulário político e ações do campo progressista, em busca de articular apoios e forças.
Uma importante entrevista da cientista política Clarice Gurgel, intitulada "Existe um descompasso entre a esquerda e a classe trabalhadora evangélica", feita em 2016, após a vitória de Marcelo Crivella (Republicanos) sobre Marcello Freixo (Psol), no Rio de Janeiro, é somente um dentre vários bons exemplos nesse sentido.
Por essa via, talvez o campo progressista consiga pautar debates e se colocar no espaço público como antítese da agenda de austeridade que tem sido levada à frente pelo governo atual.
Há, na resolução, vários outros pontos da autocrítica. Faltam muitos outros – a figura personalista de Lula, por exemplo, nem é mencionada e talvez nem seja considerada, ali, um problema. Porém, esses mencionados acima são importantes no sentido de que o efeito esperado de se revigorar a oposição depois do Lula livre dificilmente se dará sem uma reflexão mais madura sobre a realidade política do Brasil pós-2013.
Ali se manifestaram muitas contradições históricas do frágil arranjo político-partidário construído a partir da redemocratização e de inúmeros aspectos presentes na política – institucional ou não – do presente, entre os quais a própria falência do modelo conciliatório do lulismo.
*Igor Tadeu Camilo Rocha é doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais.
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Este é um blog coletivo que pretende contribuir, sob diversos olhares – da comunicação à psicanálise, da ciência política à sociologia, do direito à economia –, para explicar o fenômeno da nova política. O "Entendendo Bolsonaro" do título indica um referencial, mas não restringe o escopo analítico. Toda semana, pesquisadoras e pesquisadores serão convidados a trazer suas reflexões. O compromisso é com um conteúdo acadêmico traduzido para o público amplo, num tom sereno que favoreça o debate de ideias. Convidamos você a nos acompanhar e a interagir conosco.
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