Slogan barrado pela Justiça impulsionou narrativa bolsonarista na pandemia
* Por: Rafael Burgos
No dia 31 de março, em decisão liminar, o ministro Luís Roberto Barroso, do STF (Supremo Tribunal Federal), ordenou a suspensão da campanha "O Brasil não pode parar", veiculada cinco dias antes pelo governo federal com o objetivo de boicotar o isolamento social adotado por estados e municípios. Levantamento obtido pelo blog mostra, contudo, que, mesmo barrado em canais oficiais, o slogan foi central para a narrativa bolsonarista disseminada nas redes sociais ao longo da pandemia.
O Brasil contabilizava 2.915 casos de covid-19 e 77 mortes provocadas pela doença no dia 26 de março, quando veio à tona o vídeo inicial da campanha, que convocava jovens e adultos a trabalhar, insistindo que apenas pessoas do grupo de risco deveriam ficar em casa. Desde então, a curva epidêmica da doença provocada pelo coronavírus seguiu em franca ascensão, até superarmos, no último fim de semana, a marca de 100 mil mortos e de 3 milhões de infectados.
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Deferida pelo ministro Barroso, a medida cautelar vedou "a produção e circulação, por qualquer meio, de qualquer campanha que pregue que 'O Brasil Não Pode Parar' ou que sugira que a população deve retornar às suas atividades plenas, ou, ainda, que expresse que a pandemia constitui evento de diminuta gravidade para a saúde e a vida da população".
Na prática, entretanto, o slogan proibido pela Justiça não parou de circular nas redes bolsonaristas. Conforme levantamento obtido junto à consultoria Bites, empresa que monitora o bolsonarismo no meio digital,"O Brasil não pode parar" se estabeleceu como léxico central da narrativa empreendida pela família Bolsonaro, por ministros e por seus seguidores nas redes sociais durante os dias 17 de março e 8 de agosto, período que compreende o intervalo entre a primeira morte por covid-19 no Brasil e o dia em que o país alcançou a marca de 100 mil óbitos causados pelo novo coronavírus.
Foi dessa maneira que o slogan se revelou fundamental para a criação de antagonismos entre a vida e a economia, ou entre Jair Bolsonaro, de um lado, e governadores e prefeitos, de outro, como prescreve o manual populista do presidente brasileiro na pandemia.
'Não pode parar': menções da família Bolsonaro
Considerando as mensagens da família Bolsonaro – Jair, Flávio, Carlos e Eduardo – no Twitter, Facebook e Instagram, é possível ver que eles publicaram 72 vezes contra parar o país ao longo do período. Em 60 delas, a frase usada foi "não pode parar", se referindo aos substantivos "país", "Brasil" e "governo". Só o presidente Jair Bolsonaro utilizou 26 vezes a expressão.
Em abril, mês em que a AGU (Advocacia-Geral da União) se pronunciou ao Supremo alegando que não pretendia deflagrar a campanha novamente, as menções de Bolsonaro à ideia de que o país não poderia parar zeraram. Entretanto, no mês seguinte, em maio, elas voltaram e explodiram em junho, mês em que o Brasil alcançou a marca de 50 mil mortos pela covid-19.
O mesmo levantamento aponta que a equipe de ministros também bateu na tecla de que o trabalho "não para". Seis deles (o ex-ministro Abraham Weintraub e os ministros Luiz Eduardo Ramos, Onyx Lorenzoni, Tereza Cristina, Rogério Marinho e Tarcísio Freitas) mencionaram "não pode parar" oito vezes no total. Já os ministros André Mendonça, Jorge Oliveira, Marcos Pontes, Ricardo Salles, Tarcísio Freitas e Tereza Cristina mencionaram 25 vezes que o trabalho dos ministérios "não parou", sem citar o mote.
Deve-se chamar atenção para o fato de que parte das menções, por exemplo, do ex-ministro Weintraub, fazia referência a um outro slogan, esse promovido em campanha do MEC (Ministério da Educação), que trouxe a frase "A vida não pode parar", um modo de contornar a decisão liminar, assegurando o léxico da campanha proibida, agora em novo mote.
'Ninguém fica pra trás'
No dia 1º de abril, pouco mais de 24h após a publicação da liminar que vetou a disseminação da campanha "O Brasil não pode parar", o governo federal lançou novo material publicitário, com o título de "Ninguém fica pra trás". O novo slogan oficial foi replicado 58 vezes pela família Bolsonaro, sendo oito vezes pelo presidente entre o fim de março e início de abril, quando decidiu abandoná-la.
Menções totais às duas campanhas no Twitter
Durante o período, as redes bolsonaristas fizeram mais de 1 milhão de postagens com a frase "Não pode parar" e mais de 300 mil com a mensagem "Ninguém fica pra trás". Até maio, o número de menções gerais no Twitter a "não pode parar" e à hashtag #OBrasilNãoPodeParar e demais variações esteve sempre bem acima da hashtag e de variações da frase #NinguémFicaPraTrás.
Desde 17 de março, o número de menções de "não pode parar" foi mais que três vezes o volume da outra frase. É importante destacar, porém, que, embora o presidente e seus aliados tenham impulsionado boa parte das mensagens com o mote "O Brasil não pode parar", o levantamento considera também as menções críticas ao assunto feitas por opositores do bolsonarismo, os quais são responsáveis por cerca de um terço do total de publicações.
A narrativa da 'grande marcha'
Como costumo enfatizar neste blog, o bolsonarismo possui uma visão bem particular acerca do seu modo de estar no mundo e, por conseguinte, do seu papel na gestão do Estado brasileiro: é aquele que compreende a administração pública como a condução de uma marcha.
Em clássica análise sobre os padrões da propaganda fascista, o filósofo Theodor Adorno disse que "é provavelmente a suspeita do caráter fictício de sua própria 'psicologia de grupo' que torna as multidões fascistas tão inabordáveis e impiedosas. Se parassem para raciocinar por um segundo, toda a encenação desmoronaria, e só lhes restaria entrar em pânico."
Quando olhamos para os padrões da propaganda bolsonarista na pandemia, fica difícil não encontrar semelhanças. Confrontado com uma necessidade emergencial de "parar", o bolsonarismo pisou no acelerador e expôs, de modo ainda mais gritante, a sua natureza de movimento.
Enquanto "O Brasil não pode parar" evidencia, sem qualquer sutileza, esse impulso, chama atenção como, ainda que de modo mais contido, a campanha substitutiva transmite a mesma imagem. Afinal, se "ninguém fica pra trás" é porque há algo indo para frente. Qual o sentido de utilizar essa metáfora numa pandemia, ou precisamente no momento em que se deve ter como único norte o presente?
São essas escolhas lexicais que nos ajudam a compreender a natureza do bolsonarismo e o imaginário social ao qual o presidente e seu entorno estão arraigados. Essa história toda produziu consequências, e são os mais de 100 mil brasileiros levados pela covid-19, estes sim "deixados para trás" enquanto a marcha avançava.
* Rafael Burgos é jornalista e editor do blog "Entendendo Bolsonaro".
Este é um blog coletivo que pretende contribuir, sob diversos olhares – da comunicação à psicanálise, da ciência política à sociologia, do direito à economia –, para explicar o fenômeno da nova política. O "Entendendo Bolsonaro" do título indica um referencial, mas não restringe o escopo analítico. Toda semana, pesquisadoras e pesquisadores serão convidados a trazer suas reflexões. O compromisso é com um conteúdo acadêmico traduzido para o público amplo, num tom sereno que favoreça o debate de ideias. Convidamos você a nos acompanhar e a interagir conosco.
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