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Entendendo Bolsonaro

Bolsonaro vira bode expiatório do nosso daltonismo racial

Entendendo Bolsonaro

21/11/2020 15h32

O presidente Jair Bolsonaro e o vice-presidente Hamilton Mourão. Não basta repetir termos como antirracismo, democracia racial e racismo estrutural sem problematizar suas origens. É preciso começar cortando na própria carne e rejeitar racistas de esquerda e de direita nas urnas (Crédito: Agência Estado).

Vinícius Rodrigues Vieira

Após a morte de João Alberto Silveira Freitas, espancado e asfixiado por seguranças num Carrefour de Porto Alegre, o presidente Jair Bolsonaro e o vice-presidente Hamilton Mourão deram declarações que ignoram a dimensão racista dessa barbárie.

"Não nos deixemos ser manipulados por grupos políticos. Como homem e como presidente, sou daltônico: todos têm a mesma cor. Não existe uma cor de pele melhor do que as outras. Existem homens bons e homens maus. São nossas escolhas e valores que fazem a diferença", saiu Bolsonaro pela tangente. O presidente brasileiro reiterou tais absurdos neste sábado (21), quando na reunião do G-20, afirmou que tensões raciais são estranhas ao país. Já Mourão, embora tenha condenado o crime, disse que "com toda a tranquilidade: não existe racismo no Brasil. É uma coisa que querem importar, mas aqui não existe".

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O exercício que expõe o equívoco – ou má-fé – dos dois homens no topo da hierarquia do Executivo federal é simples. Imagine você, caro leitor: caso Beto – como a vítima de 40 anos era conhecida – fosse branco, loiro e de olhos azuis, teríamos testemunhado mais esse descalabro contra um cidadão brasileiro? A resposta é um sonoro não. Por mais que, conforme a própria polícia do Rio Grande do Sul já reconheceu, Beto tenha dado um soco em um dos seguranças antes do espancamento, a reação foi obviamente desproporcional. Mas, como estamos no Brasil, jornalistas, colunistas e demais participantes do debate público precisam repetir isso à exaustão para, talvez, a ficha cair de uma vez: somos racistas. E ponto.

No entanto, Bolsonaro e Mourão estão longe de serem, conforme já tínhamos apontado aqui, as únicas vozes negacionistas nesse debate que já começa desfavorável aos brasileiros não-brancos – em particular os de pele mais escura e traços africanos. Tal processo, portanto, destrói o tecido social que deveria unir a nação.

Vou lhes dar o benefício da dúvida e, assim, demonstrar a raiz do que me parece ser o equívoco que une direita e esquerda na questão racial à brasileira. O presidente escreveu em suas redes sociais que "o Brasil tem uma cultura diversa, única entre as nações. Somos um povo miscigenado. Brancos, negros, pardos e índios compõem o corpo e o espírito de um povo rico e maravilhoso. Em uma única família brasileira podemos contemplar uma diversidade maior do que países inteiros".

Se estadista fosse, Bolsonaro poderia ter arrematado: "dito isso, é evidente que nossos irmãos e irmãs de pele mais escura ainda são vítimas de discriminação. Como a morte do cidadão brasileiro João Alberto demonstra, ainda temos um longo caminho para que, de fato, todos sejamos vistos de maneira igual por nós mesmos. Meus sentimentos à família e que as autoridades do Rio Grande do Sul respondam à altura a tamanha barbárie".

Mas Bolsonaro não é estadista. Bolsonaro é bolsonaro (com letra minúscula mesmo – o sobrenome do presidente merece entrar para a história e os dicionários como sinônimo de político displicente e incompetente). Assim, o script seguiu conforme o esperado: "Estamos longe de ser perfeitos. Temos, sim, os nossos problemas, problemas esses muito mais complexos e que vão além de questões raciais. O grande mal do país continua sendo a corrução (sic) moral, política e econômica. Os que negam este fato ajudam a perpetuá-lo".

Notem que, ao afirmar que nossos problemas vão "…além de questões raciais", Bolsonaro, por tabela, reconhece que tais questões estão entre nossos desafios. Porém, como somos diversos – inclusive em muitas das famílias brasileiras – tratar-se-ia de uma dificuldade menor perto dos verdadeiros grandes males (corrupção moral, política e econômica) que afligem a nação.

Corrupção moral é ser chefe de Estado e não confortar uma família enlutada após perder um de seus membros de modo bárbaro. Corrupção política é apoiar um sistema de polícia e justiça paralelos, tais como são as milícias cariocas. Corrupção econômica é fomentar interesses corporativistas enquanto chefes de família de todas as cores sofrem para dar o pão nosso de cada dia a seus filhos.

Corrupção, acima de tudo, é negar a história e ignorar a brutalidade da escravidão, rediviva cada vez que um negro tem sua vida ceifada pelas mãos de agentes do Estado que trazem em seu modus operandi a lógica dos senhores de engenho. Bolsonaro, porém, não está sozinho nessa corrupção histórica. Conforme visto, Mourão também acredita não haver racismo nos Brasil. Isso porque – e o vice-presidente tem certa razão – não vivemos segregados tal como nos EUA.

Chegamos, portanto, ao cerne da confusão conceitual que, na minha modesta opinião, trava o debate sobre racismo entre nós. Nosso aparente paradoxo é termos um racismo sem raças, pelo menos no sentido em que elas são entendidas no contexto anglo-saxão, em que rígidas regras de ancestralidade e afiliação cultural determinam historicamente quem pertence ao grupo A, B ou C independentemente da aparência, aqui entendida como a combinação de cor de pele e outras características, sobretudo faciais, notadamente a cor e textura do cabelo, além do formato do nariz. Fiz essa discussão no livro "Democracia Racial, do Discurso à Realidade", publicado em 2008, com base nos escritos de Fernando Henrique Cardoso e Octávio Ianni acerca das relações raciais em Santa Catarina.

Ou seja, somos racistas sem sermos racialistas. Nossas raças (no sentido sociológico, é sempre necessário dizer, por mais que seja óbvio no debate acadêmico) estão mais distantes do conceito de etnia (que enfatiza a dimensão cultural do grupo) do que da noção de grupos de cor. O problema é que, para nossos pares e para as instituições de Estado, tais grupos de cor estão distante de serem neutros. Eles nos hierarquizam, definindo desde quem deve ser seguido pela polícia ou seguranças de supermercado por serem meliantes em potencial até quem, por exemplo, numa universidade de ponta, é visto como professor ou funcionário administrativo.

Esquerda e direita, antibolsonaristas e bolsonaristas, confundem, cada um a sua maneira, racismo com racialismo. Desde um ponto de vista nacionalista, nada mais lógico que enfatizar nossa unidade, como Bolsonaro e Mourão o fizeram. Mas isso não implica em ignorar a raiz racista da barbárie de Porto Alegre.

Do mesmo modo, para reconhecermos o racismo, não precisamos nos tornar racialistas, como parte significativa da esquerda ambiciona, ao copiar a lógica birracial americana e, ainda que implicitamente, defender que todos os negros (aqui entendidos como a soma de pretos e pardos, categorias oficiais do Censo) se identifiquem com a cultura de seus ancestrais.

Trata-se de uma ideia fora do lugar: um brasileiro negro pode ter mais em comum com um compatriota branco que com um negro, por exemplo, americano. O fato de não termos, tal como nos Estados Unidos, igrejas evangélicas segregadas por raça exempifica isso.

Aliás, se é para copiar os Estados Unidos, está na hora de termos um Obama e uma Kamala Harris, vice-presidente eleita, de ancestralidade não-europeia. Ademais, sugiro que não mais chamemos 20 de novembro de o Dia da Consciência Negra. Denominemos esse feriado – que deveria ser nacional – de "Dia de Zumbi", o herói negro – de todos os brasileiros, independentemente da cor – que liderou a resistência contra a brutalidade que foi a escravidão do colonizador português.

Nos EUA, Martin Luther King, líder da luta por direitos civis, tem seu aniversário celebrado como feriado na maior parte dos Estados, embora em alguns deles haja referência a termos supostamente neutros, como é o caso do Arizona, onde a data é também chamada de dia dos Direitos Civis.

O bolsonarismo se faz de simulacro do trumpismo. Porém, a esquerda não fica atrás quando o assunto é macaquear modelos estrangeiros. Ela deixou há tempos o nacionalismo que a caracterizou no intervalo democrático de 1945 a 1964, quando encontrou sua melhor expressão teórico-prática no elogio à mestiçagem e ao sincretismo do brizolista-trabalhista Darcy Ribeiro. Ironicamente, abraçar estrangeirismos não permitiu a emergência de líderes negros em seus quadros.

Não quero com isso negar a óbvia dimensão transnacional da luta antirracista, enraizada no conceito de negritude, que permitiu a união dos povos da diáspora africana desde a noção de pan-africanismo. Apenas enfatizo aqui que as soluções para a divisão e discriminação racial devem ser, acima de tudo, fundamentadas na realidade histórica de cada nação.

Olhe, caro leitor, para a chapas do PT e do PSOL que foram para o segundo turno em Recife e São Paulo respectivamente. Parecem saídas da social-democracia europeia. Não é coincidência, portanto, que às vezes a esquerda reproduz velhos preconceitos e mais fala do que faz. Em 1996, a hoje candidata a vice-prefeita de São Paulo Luíza Erundina, então no PT, pediu desculpas por fala racista contra o malufista Celso Pitta, que viria a ser eleito o primeiro e único prefeito negro de São Paulo (se, claro, ignorarmos os traços africanos de Washington Luís, prefeito entre 1914 e 1919 e posteriormente presidente, um representante das oligarquias branqueado nos registros históricos). Se fosse hoje, Eurundina teria sido cancelada pelos próprios critérios atuais da esquerda e os tribunais inquisitórios da internet. O ódio na rede, porém, já era manifesto há 24 anos e vitimava a própria Erundina, mulher e nordestina.

Mais recentemente, Ciro Gomes, membro do PDT e, portanto, herdeiro do brizolismo, chamou o vereador paulistano negro Fernando Holiday, membro do direitista Movimento Brasil Livre (MBL), de capitão-do-mato. Processado por Holiday, foi condenado e teve um carro penhorado como garantia para indenização por danos morais.

Fácil é fazer do bolsonarismo bode expiatório de nosso daltonismo racial. Difícil é botar a cabeça para funcionar e encontrar soluções para eliminar o racismo nosso de cada dia. Não basta, assim, repetir termos como antirracismo, democracia racial, e racismo estrutural sem problematizar suas origens. Que tal começarmos cortando na própria carne, rejeitando racistas de esquerda e de direita nas urnas?

Vinícius Rodrigues Vieira é doutor em Relações Internacionais por Oxford e professor na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e na pós-graduação da FGV


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