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Entendendo Bolsonaro

Erika Hilton: “Sociedade busca antídoto ao bolsonarismo”

Entendendo Bolsonaro

01/12/2020 00h08

"Agora nós vamos falar de vida, de favela, das esquinas de prostituição, das casas de cafetinagem, do genocídio policial, dos direitos dos homens e mulheres transexuais. Somos o antídoto do bolsonarismo e o começo de uma nova era que está por vir" (Crédito: Ravi Santana).

* Cesar Calejon 

Com 50.447 votos, Erika Hilton (PSOL) tornou-se a primeira vereadora trans e negra eleita da cidade de São Paulo, sendo a mulher mais votada de todo o Brasil nas eleições municipais de 2020.

Essa semana, ela conversou com o blog sobre a sua história de vida e, também, sobre temas que permearam a campanha eleitoral em São Paulo como a violência nas ruas da cidade, a discriminação e o abandono.

"A minha trajetória política se dá a partir do momento em que eu vejo o meu corpo, que teve muito referencial de humanidade, afeto e proteção na minha infância, sendo hostilizado e colocado em um lugar de desumanização. Eu cresci com mulheres guerreiras, trabalhadoras, que me cercaram de muito amor. A mulher que eu sou hoje eu devo a elas (…), mas, quando eu comecei a assumir a minha identidade de gênero, a minha mãe estava cooptada por uma ideia fundamentalista religiosa, o que a fez me expulsar muito cedo de casa", introduz a vereadora, que com apenas 14 anos naquela ocasião descobriu uma realidade cruel nas ruas, nas esquinas e nas casas de cafetinas.

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Por meio da educação da universidade pública brasileira, Hilton elaborou outro projeto de vida e conseguiu se tornar a mulher mais votada do país alguns anos depois. "Passei a viver essa vida desumanizada nas ruas durante a minha adolescência inteira. Quando eu reatei com a minha família, com a minha mãe e irmãs, eu tive a possibilidade de voltar a estudar e de me colocar como um corpo politicamente ativo (…) por meio da militância em um movimento estudantil", acrescenta.

"Um corpo trans, negro, de mulher e que tem consciência das suas origens e da sua história já está fazendo política, não a institucional e partidária, mas uma política de sobrevivência mesmo. Uma política pela vida. Fundei um cursinho pré-vestibular na USP em São Carlos voltado para as pessoas trans e travestis e comecei a lecionar e coordenar essa iniciativa, e por esse caminho iniciou-se a minha trajetória partidária", conta a parlamentar.
Em 2015, veio a filiação ao PSOL, quando ela começou a atuar mais próxima ao partido, mas ainda não como candidata e sem o interesse de disputar uma eleição naquele momento.

"Em 2018, eu recebi um convite da bancada ativista para integrar um mandato coletivo e confesso que fiquei reticente em aceitar, porque me perguntei se estava preparada para ocupar aquele lugar. Eu tinha medo de que a política institucional tirasse a minha veia militante e me enquadrasse na institucionalidade, mas achei que a plataforma era interessante, o momento era pertinente e importantíssimo, era a ascensão do bolsonarismo no Brasil, então resolvi seguir em frente. Nessa ocasião começa a minha jornada como um corpo parlamentar. Atuei quase dois anos como codeputada, dentro e fora da Assembleia Legislativa de São Paulo. Em 2020, lançamos a candidatura Gente é Para Bilhar e recebemos essa votação recorde do povo brasileiro", celebra Hilton.

Segundo ela, na eleição de Jair Bolsonaro, "a população LGBTQIA+ chorou nas ruas por conta do projeto nefasto que havia sido eleito. Tínhamos o receio de sermos metralhadas nas ruas em plena luz do dia ou queimadas em praça pública. O que o bolsonarismo representava é esse projeto de aniquilação, morte e destruição de todas as classes mais pobres e vulneráveis. Esse projeto representa a precarização dos sistemas de saúde, educacional, transporte público, de tudo. Representa uma ameaça para 90% da sociedade brasileira para defender os interesses de uma casta hegemônica que sempre esteve no poder".

Mais especificamente, as populações negras, LGBTQIA+ e indígenas foram eleitas como as principais inimigas do governo bolsonarista. "Éramos nós que estávamos na mira do ódio, das notícias falsas, foram os corpos que tiveram que pedir asilo político em outros países. Então, quando em 2020 a nossa campanha elege uma mulher preta, jovem, vinda da periferia, travesti com muito orgulho e que tem esse discurso baseado na minha história de vida e não em teorias, sendo eleita como a mulher mais bem votada do país, isso significa uma resposta que a sociedade está buscando na forma de um antídoto ao bolsonarismo", pondera a vereadora.

"Somos muitas", prossegue ela, "estamos organizadas e estamos conduzindo um ato revolucionário de contra-ataque a esse sistema hegemônico que sempre nos atacou durante as nossas vidas inteiras. Não vamos nos calar e não sentiremos medo da ameaça institucional que está posta em nosso país. Vamos às ruas eleger representantes legislativos que sejam capazes de combater todo o mal que o bolsonarismo acarretou ao Brasil. Não seremos mais vítimas caladas de uma oligarquia política que só nos coloca e um lugar de mazelas".

Ainda de acordo com Hilton, o seu mandato parlamentar vai estimular a visibilidade trans e os grupos sociais que foram historicamente negligenciados e violentados pelo poder público e sociedade civil no Brasil.

"Agora nós vamos falar de vida, de favela, das esquinas de prostituição, das casas de cafetinagem, do genocídio policial, dos direitos dos homens e mulheres transexuais. Somos o antídoto do bolsonarismo e o começo de uma nova era que está por vir. Uma era que vai barrar o retrocesso e mostrar que a política institucional brasileira não é somente um lugar para homens, brancos, velhos e cisgênero. (…) Nós chegamos para mudar esse cenário. O Brasil elegeu uma mulher, travesti preta como a vereadora mais votada em 2020. Estamos virando uma chave estrutural e mostrando que nós existimos para além do cárcere, das esquinas e das manchetes policiais e temos a capacidade de fazer uma política honesta e coerente com os movimentos sociais e alinhada com as bases populares e as ideias de Marielle Franco, Lélia Gonzalez, Benedita da Silva. Uma política da vida", garante.

Ela entende, contudo, que isso não significa que as barbaridades às quais os grupos mais diversos sempre enfrentaram no país terminam imediatamente. "Vamos ressignificando a sociedade um passo por vez, mudando a percepção das pessoas com relação ao mundo. Não permitiremos mais sermos interrompidas ou invisibilizadas. Estamos sedentas de justiça social e vamos incomodar até que muitas de nós ocupem cadeiras no Parlamento (brasileiro)".

Quando questionada sobre o risco real que exercer a profissão de parlamentar defendendo determinadas pautas progressistas invariavelmente oferece no Brasil, Hilton ilustra como essa força para batalhar por progresso social emerge da luta contra a opressão, a exclusão, a discriminação e a destruição do meio ambiente.

"Eu sinto medo pela minha própria vida, mas isso não começou agora (durante as eleições de 2020). Eu sempre senti medo pela minha vida. Quando se nasce negra, mulher e travesti, na periferia de São Paulo, sentir medo pela sua vida é a primeira coisa que te acompanha. Você vê as suas pessoas amadas sendo mortas, aprisionadas. Estar na política me coloca em uma posição de maior visibilidade, mais exposta. Mas, quando eu estava em uma esquina e entrava no carro de um cliente desconhecido, eu também tinha medo de não voltar. Quando eu ficava acordada, de madrugada, nas ruas de São Paulo esperando para garantir o meu sustento, eu também tinha medo de ser apedrejada, espancada, de levar um tiro. Eu sempre tive medo pela minha vida graças a essas estruturas de ódio e violência que marcam corpos como o meu para serem mortos e abusados. Apesar disso, esse medo não me paralisa, mas me encoraja e me convoca a fazer uma mudança para denunciar essas estruturas podres da política institucional e estimular outras mulheres e jovens a ocuparem posições de poder", enfatiza Erika.

"Eu quero deixar como legado uma política horizontal, popular e participativa, conduzida pela perspectiva da classe trabalhadora e dos mais pobres. Quero ser lembrada como uma mulher forte, que enfrentou os absurdos da política brasileira e paulistana na minha época. Sigamos na luta e afrontando essas estruturas de poder", conclui.

* Cesar Calejon é jornalista com especialização em Relações Internacionais pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e mestrando em Mudança Social e Participação Política pela Universidade de São Paulo (EACH-USP). É, também, autor do livro "A Ascensão do Bolsonarismo no Brasil do Século XXI" (Lura Editorial).


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