Urnas indicam que frente anti-Bolsonaro deve passar pelo Centrão
* Vitor Marchetti
Antes de analisarmos os impactos eleitorais das eleições de 2020 sobre as eleições de 2022, precisamos avaliar como a paisagem de 2020 mudou em relação à paisagem de 2016 (última eleição municipal). Uma primeira advertência: desde 2013 o sistema político brasileiro vem passando por abalos sísmicos profundos. Todos os preditivos da ciência política que funcionaram para analisar os rumos das disputas eleitorais desde pelo menos 1994 foram detonados.
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Em outras palavras, os últimos anos formaram pontos fora da curva na série histórica e ainda é cedo para identificarmos se já está em curso uma reacomodação do sistema. Feita a advertência, podemos dizer o seguinte sobre as mudanças de 2020 em relação a 2016:
1) Consolidação da mudança do centro gravitacional da política brasileira. Entre 2000 e 2012, PSDB, MDB e PT construíram grande capilaridade regional e organizaram as disputas nacionais. Para termos uma ideia, considerando apenas as 96 grandes cidades de hoje, em 2000 e 2004 54% eram governadas por um dos três partidos, em 2008 eram 62% e em 2012 eram 51%. O resultado das urnas em 2020 indica que esses três partidos governarão apenas 39% delas. O PT não governará nenhuma capital. O PSDB teve uma queda de 33% e parece se manter no cenário apenas pela força que mantém no Estado de São Paulo. Já o MDB amargou uma queda de 25% em prefeituras conquistadas, apesar de ter mantido a liderança em número de prefeituras conquistadas. O partido ainda tem capital para queimar, mas perde espaço no centro político.
2) O bolsonarismo está presente, mas com crescimento menor do que poderia ser projetado. E isso não apenas porque os candidatos apoiados pelo presidente em suas lives fracassaram, mas porque o estilo do bolsonarismo não foi a tônica dessas eleições. Nas eleições de 2016 dois candidatos representaram bem esse espírito bolsonarista antes mesmo de Bolsonaro vencer as eleições presidenciais, Doria em São Paulo e Crivella no Rio de Janeiro. Havia ainda o espírito antissistêmico e antipolítica que empolgavam candidatos e eleitores, como bem retratado, à época, no slogan de Kalil em Belo Horizonte, "chega de político, é hora de Kalil".
Eram discursos e posturas muito parecidas com as adotadas no posterior discurso do presidente. Combate à corrupção, apoio à "Lava Jato", exaltação da nova política e a construção de um espantalho, Lula/PT. Apesar disso, ainda tiveram prefeitos que disputaram as eleições municipais tentando espelhar o estilo do presidente. Destaque para o derrotado em Fortaleza (Capitão Wagner com 48% dos votos) e o vencedor em Vitória (Delegado Pazolini, com 58% dos votos).
Era de se esperar que um presidente da República eleito há apenas dois anos com larga base eleitoral pudesse organizar de modo mais presente o seu campo político. Não foi o que aconteceu, mas, dado que o presidente teve participação bem marginal nessas eleições, tampouco podemos afirmar que Bolsonaro saiu derrotado para as eleições de 2022. O que acontecer com a economia do país em 2021, por exemplo, será muito mais decisivo do que os resultados dessas eleições municipais.
3) Crescimento dos partidos do campo da direita que se identificam com uma agenda liberal na economia e conservadora nos costumes. É o que diversos analistas têm chamado de "nova Arena". O DEM passará a ser o terceiro partido em número de habitantes governados (11,53% da população brasileira), saltou para 464 prefeituras (frente a 276 de 2012 e 266 de 2016) e governará dez grandes cidades (com mais de 200 mil eleitores, com destaque para Rio de Janeiro e Salvador). O PSD passará a ser o quarto partido em número de habitantes governados (10,36% da população brasileira), saltou para 654 prefeituras e também governará dez grandes cidades (com destaque para Belo Horizonte). Por fim, o PP será o segundo em número de prefeituras (685) e assumirá sete grandes cidades (com duas capitais, João Pessoa e Rio Branco).
4) O campo da esquerda saiu menor, tanto em número de prefeituras quanto em habitantes governados. Em 2016, somados, PDT, PSB, PT, PCdoB e PSOL governavam 1.070 cidades e cerca de 18% da população brasileira. O resultado das urnas aponta que a soma de prefeituras conquistadas por esses partidos será de 800 e governará cerca de 13,8% da população. Alguns destaques merecem ser feitos. O PSOL se consolidou definitivamente no cenário eleitoral, aumentando suas bancadas legislativas, disputando a principal capital do país (São Paulo) e ganhando sua primeira capital (Belém). O PDT mantém sua força no Ceará e o PSB em Pernambuco. O PT, apesar da redução no número de prefeituras, foi o partido mais votado para as câmaras municipais dos municípios com mais de 500 mil habitantes, disputou 15 segundos turnos em grandes cidades e conquistou quatro (Juiz de Fora, Contagem, Diadema e Mauá).
Olhar para esse cenário e projetar as próximas eleições de 2022 exige cautela. Mas o contorno do desenho parece ser esse:
a) Bolsonaro: vai disputar as eleições presidenciais e não pode ter sua força eleitoral menosprezada. Entretanto, mesmo que tenha força popular para, por exemplo, chegar a um segundo turno, seu desafio será construir uma base mais orgânica. Hoje ele não está filiado a nenhum partido e já se mostrou nada confiável do ponto de vista institucional. Bolsonaro tem base popular, mas não tem base orgânica. E é muito pouco provável que 2022 repita 2018. O ciclo do cometa Halley passou em 1989 e em 2018, pode levar mais 30 anos para passar novamente.
b) Nova ARENA (Centrão): sai das eleições municipais com alta organicidade, mas ainda em busca de uma liderança nacional. Seus caciques partidários são experientes e não parecem dispostos a fazer um movimento em direção a Bolsonaro nas eleições. Fazem esse movimento para garantir determinadas agendas no Congresso, mas é quase certo de que somarão forças para apresentar uma candidatura própria em 2022. Ganham destaque lideranças como ACM Neto, César Maia e Gilberto Kassab. No retrato atual, este é o espectro político com maior potencial para formar uma frente contra a candidatura de Bolsonaro. Partidos como PSDB e MDB poderiam ser facilmente atraídos, mas também não é descabido pensar em uma aproximação vinda da centro esquerda (PDT e PSB).
c) PDT e PSB: perderam fôlego nessas eleições municipais e reforçaram seus limites territoriais. Mas podem desempenhar um papel importante na reorganização do centro pela esquerda, ou da esquerda pelo centro. Observar os passos dos antigos quadros, como Ciro Gomes, e dos quadros mais novos, como João Campos e Tabata Amaral, pode nos dar boas pistas de como esse campo pode ser construído. Há boas apostas, inclusive, de que o governador Flávio Dino possa ser atraído para este eixo. Se o movimento pender para a nova ARENA terão que resolver importantes arestas programáticas, principalmente no campo macroeconômico. Se o movimento pender para a esquerda, o desafio será negociar o protagonismo com o PT que, a despeito dos resultados das eleições municipais, ainda representa a parcela mais orgânica do campo da esquerda.
d) Esquerda pós-Lula: esse campo pode ter ficado menor do que já foi, mas ainda desempenha um importante papel na organização das eleições nacionais. O PT é o maior partido da Câmara dos Deputados e carrega uma estrutura orgânica que poucos partidos políticos no mundo têm à sua disposição. Ainda é a agremiação com maior preferência entre os brasileiros que indicam alguma identidade partidária e o segundo maior em número de filiados. Além disso, é no campo da esquerda o partido com o maior número de governadores. Lula sempre foi um organizador desse campo e por muito tempo reuniu os predicados fundamentais para o seu sucesso político eleitoral: liderança nacional/popular e organicidade partidária. Algo pouco debatido é que as eleições de 2020 podem ter sido um marco para o início do ciclo pós-Lula.
O ex-presidente, a despeito de ter participado de algumas campanhas e manifestado apoio aos seus candidatos, teve o menor protagonismo em uma eleição desde 1989. As principais novidades nesse campo foram o desempenho de Guilherme Boulos em São Paulo, de Manuela D'Ávila em Porto Alegre e Marília Arraes em Recife. Se considerarmos que nesse campo ainda temos o ex candidato Fernando Haddad e os governadores Jacques Wagner e Flávio Dino, podemos dizer que o campo se tornou multicêntrico, o que faz com que o desafio deste campo, principalmente do PT, tenha que ser duplo. O primeiro, voltado para dentro, se reorganizando para não perder o protagonismo nacional, garantindo cadeiras na Câmara e no Senado, e o segundo, voltado para fora, ampliando suas alianças para disputar efetivamente a presidência da República. Cumprir bem as duas tarefas não será fácil.
e) Por fim, não parece ter sobrado muito espaço para uma aventura de verão. Se Luciano Huck ou Sergio Moro estiverem dispostos a entrar no jogo, não me parece que encontrarão muito espaço para além dessas peças que já estão no tabuleiro. Para o primeiro a missão pode até ser possível, mas para o segundo é quase impossível, restando-lhe algum partido menor e marginal, como o Novo.
* Vitor Marchetti é cientista político e professor do Bacharelado e da Pós-graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC (UFABC)
Este é um blog coletivo que pretende contribuir, sob diversos olhares – da comunicação à psicanálise, da ciência política à sociologia, do direito à economia –, para explicar o fenômeno da nova política. O "Entendendo Bolsonaro" do título indica um referencial, mas não restringe o escopo analítico. Toda semana, pesquisadoras e pesquisadores serão convidados a trazer suas reflexões. O compromisso é com um conteúdo acadêmico traduzido para o público amplo, num tom sereno que favoreça o debate de ideias. Convidamos você a nos acompanhar e a interagir conosco
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