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Entendendo Bolsonaro

Freixo: “Um terço do Rio é controlado pelas milícias”

Entendendo Bolsonaro

06/01/2021 13h08

"O Eduardo Paes vai governar somente uma parte do Rio de Janeiro. Existe uma região grande na qual o que o prefeito determinar não vai valer, porque quem manda é a milícia e o tráfico. O Rio tem uma situação que é muito dramática, muito grave" (Crédito: Reprodução).

* Cesar Calejon

É notória, no Brasil deste começo de 2021, a intensificação da militarização e da milicianização da nossa política institucional. Quando falamos em militarização, estamos nos referindo à crescente participação de delegados, policiais, cabos, bombeiros e militares na arena político-institucional, o que é perfeitamente constitucional e expressa certos anseios da população no que tange a segurança pública. 

Já a expressão milicianização remete à também crescente presença de grupos paramilitares e do aparelhamento de estruturas de Estado (como nos evidentes casos da Abin e da Polícia Federal, por exemplo), configurando o cometimento de diversos crimes previstos na lei brasileira.

A militarização e a milicianização da política nacional têm correlações diretas com os símbolos usados pelo bolsonarismo para ascender ao poder. Retratando armas com as mãos, Jair Bolsonaro sempre atuou no sentido de avançar a narrativa antissistêmica para desacreditar a democracia e utilizar da força para governar sem as restrições republicanas.

Em 2022, a perspectiva é de que o bolsonarismo possa utilizar esses elementos que vêm sendo estimulados ao longo dos últimos anos para tentar judicializar o pleito, caso a derrota nas eleições presidenciais seja iminente. Movimentos neste sentido têm sido previamente anunciados, considerando o exemplo norte-americano de Donald Trump, grande inspiração do presidente brasileiro, ou mesmo as infundadas declarações de fraude eleitoral que marcam a trajetória de Jair Bolsonaro, tanto enquanto deputado como, atualmente, enquanto presidente.

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Diante desse cenário, o blog conversou com o deputado federal Marcelo Freixo (PSOL-RJ), que falou sobre os desafios deste ano de 2021, com destaque para a necessidade de refundar a cidade do Rio de Janeiro, visando combater a expansão do poder paralelo no estado que serviu de laboratório para a ascensão do bolsonarismo ao âmbito federal. Na opinião dele, os atores democráticos das últimas décadas não trataram com a devida seriedade o tema da segurança pública.

"Tanto a militarização quanto a milicianização da política acontecem com base na promessa do estabelecimento da ordem. (…) Nesse sentido, o debate da segurança pública é extremamente importante para a democracia e eu trabalho com isso há mais de trinta anos. Eu trabalhei dentro das prisões, com pesquisas sobre o efeito da insegurança pública, da violência letal etc. (…) A gente vive um processo democrático no qual esse tema não foi levado a sério", introduz o deputado.

"Apesar de todas as conquistas", prossegue Freixo, "a Constituição de 1988 não avançou em segurança pública e não fez o debate que deveria ser feito nessa área. Em parte, porque a esquerda brasileira demorou muito para discutir essa pauta como tema vital para a democracia brasileira. O setor mais à direta da política nacional apropriou-se do debate da segurança dialogando com o medo da sociedade e apelando para algo que não é eficaz. (…) O Bolsonaro fala de segurança, mas qual foi a boa proposta que ele fez? Nenhuma. Nós fizemos a CPI das milícias, a CPI do tráfico de armas e munições, ações concretas. Ele dialoga com o medo, com o ódio, a violência e a insegurança. De alguma maneira, isso traz essa resposta da população. Então, há um número enorme de soldados, cabos e policiais eleitos. Na Comissão de Segurança (do Rio de Janeiro) existem muitos. Contudo, isso é um momento que reflete essa crise da democracia que estamos vivendo e essa incapacidade de tratarmos esse tema de forma mais adequada".

Apesar de ambas (a militarização e a milicianização) prometerem "organizar a casa e conservar os valores tradicionais", a filosofia militar é organizada com base em disciplina, hierarquia e rigidez, enquanto a proposta miliciana baseia-se na intimidação, na coerção e na violência.

"Eu investiguei muito as milícias cariocas. A CPI das milícias prendeu todos os grandes milicianos do Rio de Janeiro em 2008. Foi uma CPI que trouxe resultados concretos. (…) O Bolsonaro tem relação e sempre defendeu a legalização das milícias, o que é inacreditável. Ele nunca sequer contestou esse fato. (…) A milícia surge falando em ordem e contra o tráfico de drogas, afirmando que naquele território existe lei. O que eles não dizem é que essa é uma lei feita por eles para extorquir a população. Um estado leiloado", explica Freixo.

"A milícia tem um lado de militarização por meio do seu discurso de ordem, que se perde completamente a partir do momento que começam as extorsões e os assassinatos. Existe tráfico de drogas na milícia hoje, monopólio de gás, internet etc. Ainda hoje, a milícia funciona como a máfia: de um lado tem o seu braço de assistência social, porque todo dono de milícia também tem um centro social, e do outro tem o terror. Sempre falando de ordem e, de alguma maneira, ocupando o papel que caberia ao Estado", prossegue o parlamentar, que foi o único deputado eleito pelo PSOL em 2006 e era praticamente o único quadro de oposição naquela ocasião.

"Vários milicianos haviam sido eleitos para a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro e eu perdi o meu irmão, que foi assassinado pela milícia também naquele ano. Então, isso tudo foi um processo muito difícil para mim: minha família estava destroçada pela ação da milícia e estávamos sozinhos na oposição ao governo do (Sérgio) Cabral. A nossa primeira iniciativa foi propor a CPI das milícias, porque eu precisava ter dignidade com a minha própria história. Esse primeiro mandato foi muito forte. Aprovamos essa CPI, fizemos um relatório muito duro e atuamos junto à sociedade civil. Ao todo, até aqui foram três CPIs durante três mandatos: das milícias, do auto de resistência e do tráfico de armas e munições. Implementamos diversas leis e eu presidi a Comissão de Direitos Humanos. Foram três mandatos muito intensos", relembra Freixo.

Para ele, "o Rio de Janeiro tem que ser refundado. Por exemplo, o (Bruno) Covas foi eleito e vai governar São Paulo. No Rio, o Eduardo (Paes) vai governar somente uma parte da cidade. Existe uma região grande na qual o que o prefeito determinar não vai valer, porque quem manda é a milícia e o tráfico. Um em cada três cariocas vive em áreas onde quem define as regras não é o Estado. Um terço da cidade é controlado pelas milícias. O Rio tem uma situação que é muito dramática, muito grave".

"Eu vou propor um seminário, já estou falando com a Assembleia Legislativa, com o Ministério Público, várias instituições, para discutirmos esse processo de como podemos refundar as nossas instituições e a cidade para enfrentarmos o crime organizado, a milícia e o tráfico. Trata-se de devolver os territórios às pessoas para resgatar a dignidade do local no qual elas moram, dormem, acordam, saem para trabalhar e criam os filhos. (…) O Rio tem hoje um domínio do crime que nenhuma outra cidade tem. Temos que ter responsabilidade nesse sentido", pondera o deputado.

Para enfrentar as milícias, Freixo sugere uma estratégia inteligente e elaborada. "A milícia é uma máfia, então não podemos enfrentá-la somente com as prisões. É importante prender os líderes. Eles foram presos durante a CPI das milícias. Foram mais de 240 prisões imediatas. Basicamente todos os líderes foram presos e ainda assim a milícia cresceu. Então, precisamos retirar da milícia os poderes territorial e econômico. A milícia domina, por exemplo, o transporte que é chamado de 'alternativo' no Rio. Na verdade, em muitos lugares esses são os únicos meios de transporte público disponíveis. (…) Ter uma política de transporte que atenda as pessoas e retire da milícia o controle das vans e a extorsão que eles fazem sobre os motoristas. Isso é fundamental e envolve a Prefeitura", observa o parlamentar.

A regularização fundiária é outro aspecto essencial para combater as milícias, de acordo com ele. "Além disso, precisamos criar um setor de inteligência sólido para apontar quais setores das forças públicas estão de fato envolvidos com as milícias. A milícia e o tráfico são organizações que precisam ser enfrentadas, mas cada uma tem as suas próprias peculiaridades, o que requer estratégias distintas de combate. O tráfico faz oposição ao Estado, enquanto a milícia atua dentro da própria institucionalidade. São naturezas distintas de grupos criminosos. Apesar disso, em todos os casos é necessário cortar os recursos, seguir a rota do dinheiro. Essas propostas estão todas no relatório da CPI das milícias desde 2008. Precisar haver vontade política", enfatiza o deputado.

"O Bolsonaro responde por uma democracia totalitária. Para ele, a vontade da maioria deve prevalecer para se tornar o todo (…). Ou seja, não existe o respeito pela beleza da diversidade. Além disso, ele é intimamente relacionado com a milícia e a corrupção. É um criminoso. Sempre foi. Eles (os Bolsonaro) são uma quadrilha e defendem a milícia porque se beneficiam desses esquemas", garante Freixo, que também defende a unidade do campo progressista para combater a milicianização da política e a possível tentativa do bolsonarismo de encerrar definitivamente o que resta da combalida democracia brasileira em 2022.

"Eu conversei com o Ciro (Gomes) essa semana, eu converso com o PT todos os dias. (…) Precisamos de uma frente que seja elaborada com base em um programa que seja capaz de dizer como vamos desenvolver o nosso país, endereçar a questão climática, lidar com a saúde, a educação e a segurança (pública). Esse programa precisa das melhores pessoas. (…) Eu sempre defendo a unidade da esquerda, mesmo quando o PSOL discorda nesse sentido. Combater a alucinação bolsonarista e defender a democracia brasileira deve ser a prioridade nesse momento", conclui Freixo.

* Cesar Calejon é jornalista com especialização em Relações Internacionais pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e mestrando em Mudança Social e Participação Política pela Universidade de São Paulo (EACH-USP). É, também, autor do livro "A Ascensão do Bolsonarismo no Brasil do Século XXI" (Lura Editorial).


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