Invasão ao Congresso americano serve de alerta ao Brasil
* Raphael Tsavkko Garcia
Com bandeiras confederadas e, em alguns casos, portando armas, milhares de ativistas de extrema-direita incitados pelo presidente derrotado nas eleições de 2020, Donald Trump, e por outros membros destacados do Partido Republicano, como Ted Cruz, invadiram o Congresso americano, entrando em confronto com policiais no local. É impossível saber quais serão as consequências no longo prazo para os Estados Unidos e para o mundo – e o Brasil em particular.
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2021 não será um ano fácil, mesmo sem contarmos com a pandemia da covid-19. A onda de choque dos acontecimentos nos EUA, independentemente do sucesso ou fracasso da tentativa de golpe perpetrada pelo trumpismo, será sentida em todas as partes. A desestabilização da democracia mais poderosa do mundo nos traz apenas incertezas.
Claro, alguns podem dizer que os EUA estão tendo o que merecem ao passarem, ironicamente, pelo mesmo processo que eles financiaram e incitaram por mais de um século em boa parte do mundo. Âncoras de TV nos EUA pareciam embasbacados, não conseguiam entender como o país havia chegado a esse ponto, tampouco parecia passar pela cabeça deles que os Estados Unidos fizeram dezenas de países passarem pelo mesmo ou até pior.
Mas, com os pés no chão, temos de entender que um golpe nos EUA (ou sua tentativa) pode levar a consequências terríveis por todo o mundo. Pior, sequer conseguimos prever quais seriam dado o ineditismo da situação. Se Trump tem tentado dar um golpe desde as eleições, agora ficou absolutamente claro que ele tem o apoio de milícias criminosas – e armadas – dispostas a consumar o golpe.
Segundo José Antonio Lima, jornalista e professor de Relações Internacionais, e também colaborador deste blog, "já se pode dizer desde a eleição [que um golpe está em curso] e hoje é o momento mais simbólico de uma empreitada que, por um lado, é tragicômica, mas por outro pode ter impactos de longo prazo na posição dos EUA como modelo."
E fica a lição para os legisladores brasileiros: não se contemporiza com fascistas. Não se permite que milícias armadas se organizem, que grupelhos como os de Sara Winter se reúnam livremente às portas do Supremo Tribunal Federal. Acima de tudo, não é tolerável que uma central de ódio e fake news se organize e promova campanhas de desinformação de dentro do Palácio do Planalto – como é o caso do gabinete do ódio.
Em um país cujas instituições têm solidez duvidosa e cuja democracia é apenas recente – e cujos criminosos da ditadura passada não apenas não foram julgados e condenados, como são parte do atual governo e homenageados pelo próprio presidente –, eventos como o que se vê acontecer hoje em Washington acendem no imaginário um perigo ainda maior. Dessa maneira, a tarefa de responsabilizar Jair Bolsonaro pelos múltiplos crimes cometidos desde a cadeira da Presidência ganha elevados níveis de urgência. Trata-se de tirá-lo do poder antes que ele o tome à força.
Se parecem assustadoras as imagens de bandeiras confederadas dentro do Congresso americano, nos deveria enojar da mesma forma a defesa e as homenagens de Bolsonaro a um torturador e assassino como Brilhante Ustra. É assustador pensar no perigo que a democracia brasileira corre diante das imagens da tentativa de golpe de Donald Trump nos EUA. As instituições americanas são, ao menos em tese, fortes. As nossas, não – e estão cada vez mais frágeis, desacreditadas.
Fica o desejo de que essas ideias não cheguem a Bolsonaro, ou melhor, que ele não as execute, porque indicações de que não aceitará uma derrota são inúmeras. Ao contrário dos EUA, Bolsonaro conta com apoio do Exército, com a simpatia de altos cargos (e de inúmeros soldados) da Polícia Militar e mantém um sólido apoio de 30% da população, enquanto a oposição bate cabeças e ainda se mostra incapaz de esboçar qualquer resistência.
Não faltam análises sobre como chegamos até aqui – fake news, descrédito da imprensa, identitarismo da esquerda, fadiga com a política tradicional, dentre outras. No entanto é preciso ir além da análise do "como" para chegamos a "o que fazer".
Precisamos resgatar a confiança na imprensa, e para isso ela própria precisa decidir de que lado está: o da democracia, ou o do caça-cliques, das notícias falsas, da contemporização e do "doisladismo". É preciso resgatar a confiança na ciência, no conhecimento, na educação, não baixando a cabeça diante de negacionismo, de terraplanismos ideológicos e argumentativos, não permitindo que ideias inaceitáveis e sem base científica ocupem o mesmo espaço no debate público que posições embasadas em ciência e em fatos. E para isso é preciso combater o fundamentalismo religioso, é preciso colocar um fim aos benefícios e isenções de líderes religiosos e suas igrejas e fazê-los respeitar as mesmas regras que o resto da população.
E, é fundamental, os democratas do país precisam se unir para pôr um fim ao bolsonarismo. Para dar um basta não apenas a um governo que tem destruído o país e o entregado à pandemia, mas à ideologia ou conjunto de ideologias que o sustenta.
E ações são necessárias agora – na verdade estão atrasadas. Senão em 2022 poderemos ter um presidente que, como Trump, se recusa a respeitar o resultado das eleições, podendo se aproveitar de sua influência nas Forças Armadas e na polícia para garantir sua continuidade. Isso, claro, se ele não vencer as eleições, afinal hoje é o cenário mais provável, já que inexiste oposição organizada. A eleição para a presidência do Senado, afinal, mostra a dificuldade de se formar uma frente ampla e expõe a fragilidade dos acordos alcançados.
Em ambos os casos – de vitória eleitoral ou de derrota seguida de contestação –, é difícil acreditar que a democracia brasileira aguentará o tranco, mais quatro anos (ou, contando desde hoje, seis anos) de negacionismo, de repúdio à ciência e à razão, de políticas genocidas contra populações indígenas (em que pese serem, em muitos aspectos, continuidade de governos anteriores), de políticas direcionadas à destruição da Amazônia, das instituições democráticas e do tecido social.
A lição que fica da tentativa de golpe nos EUA é de que os democratas no Brasil precisam se mobilizar urgentemente para evitar que o cenário se repita no país, porque, como já disse o próprio deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), em raro momento de lucidez, sobre uma tentativa de golpe de Estado: "O problema não é mais se [haverá uma ruptura], mas quando".
* Raphael Tsavkko Garcia é jornalista e doutor em direitos humanos pela Universidade de Deusto. Contribuiu para veículos como Foreign Policy, Undark, The Washington Post, Deutsche Welle, entre outros.
Este é um blog coletivo que pretende contribuir, sob diversos olhares – da comunicação à psicanálise, da ciência política à sociologia, do direito à economia –, para explicar o fenômeno da nova política. O "Entendendo Bolsonaro" do título indica um referencial, mas não restringe o escopo analítico. Toda semana, pesquisadoras e pesquisadores serão convidados a trazer suas reflexões. O compromisso é com um conteúdo acadêmico traduzido para o público amplo, num tom sereno que favoreça o debate de ideias. Convidamos você a nos acompanhar e a interagir conosco.
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