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OCDE: traição dos EUA expõe amadorismo do Itamaraty

Entendendo Bolsonaro

11/10/2019 00h56

(Crédito: Alan Santos/PR)

* Vinícius Rodrigues Vieira

Pelo menos temporariamente, os Estados Unidos suspenderam o apoio ao ingresso do Brasil na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), contrariando promessa feita pelo presidente americano Donald Trump a seu colega Jair Bolsonaro durante visita a Washington em março.

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Para usar uma metáfora chula, à moda Bolsonaro, o Brasil tomou "bola nas costas". Ou, em termos mais polidos, mas ainda seguido o padrão do presidente, podemos dizer que Bolsonaro queria monogamia com Trump. Obteve, no máximo, uma aliança poligâmica em que o Brasil está longe de ser a esposa preferida.

Isso porque os EUA optaram por mobilizar sua força para apoiar o ingresso de Argentina e Romênia, segundo documento da diplomacia americana, datado de 28 de agosto.

Trump chamou a notícia de fake news, mas não deu prazo para endossar o ingresso do Brasil na organização.

Em sua live semanal, na noite de quinta, Bolsonaro minimizou a traição de Trump, acatando a versão da Casa Branca de que os dois países estariam à frente do Brasil: "Continuamos firmes e fortes (na questão). Daqui um ano, um ano e pouco, estaremos dentro, se Deus quiser", disse ele.

O fim – ou, pelo menos, suspensão – do apoio americano se torna ainda mais grave depois que o ministro da Economia Paulo Guedes revelou ao site 'O Antagonista' que já sabia o que se passava nos bastidores.

Nas palavras do ministro, reproduzidas pelo site, "eles [os americanos] nos disseram que, por questão estratégica, não poderiam indicar o Brasil neste momento, mas não é uma rejeição no mérito. É uma questão de timing, porque há outros países na frente, como a Argentina." Ademais, segundo a explicação americana ao ministro, parafraseada por ele, "abrir para o Brasil agora significaria ceder à pressão dos europeus, que também querem indicar mais países para o grupo."

Cabe ao Congresso convocar Guedes para prover detalhadas acerca desse conhecimento prévio. O silêncio de Guedes viola os pressupostos da diplomacia pública, que consiste em dar publicidade e abrir, na medida de possível, as decisões de política externa ao debate democrático. O que levou o governo a não tornar essa negativa pública? Impedir que a controversa indicação do deputado federal e filho do presidente Eduardo Bolsonaro ao cargo de embaixador em Washington?.

Nesse cenário, porém, não é exagero dizer que o filho "03" passou a ter chances quase nulas de virar embaixador em Washington. O amadorismo da política externa bolsonarista, somado à crise do clã presidencial com o PSL – que pode demandar de Eduardo uma maior participação no diretório do partido em São Paulo – , criou as condições ideais para que tamanho despautério deixe de ser tolerado pelo Senado, a quem cabe aprovar indicações para a chefia de missões diplomáticas no exterior.

Isso porque a proximidade entre Trump e os Bolsonaros se demonstra prejudicial aos interesses nacionais em longo prazo. A entrada do Brasil no dito clube dos ricos vem mobilizando debates acadêmicos e políticos desde os anos 1990, o auge da globalização liderada pelos EUA. Ficou adormecida nos governos petistas, que preferiram – também sob condições e resultados duvidosos no longo prazo – alianças com as potências emergentes e o Sul Global.

O governo Michel Temer retomou a agenda OCDE e submeteu o interesse do Brasil em integrar a organização em 2018, antes das eleições presidenciais, como estratégia para sinalizar a disposição do país em adotar as ditas "melhores práticas de mercado" e, assim, atrair mais investimentos para proporcionar a retomada do crescimento econômico.

A "bola nas costas" que Bolsonaro tomou de Trump não decorre de seu conservadorismo-populismo. Temer, por exemplo, mesmo à direita, manteve as grandes diretrizes da diplomacia brasileira desde a redemocratização, além de princípios históricos como o comprometimento com o multilateralismo.

Falta à diplomacia bolsonarista a noção de issue linkage – isto é, não se negocia algo numa área sem potencialmente considerar cessões em outra, enquanto se mobiliza não apenas um aliado, mas também outros.

Por exemplo, se, como diz Guedes, os EUA não querem ceder à pressão dos europeus para aceitar mais membros, por que o Brasil não entra diretamente na jogada, procurando o apoio de membros proeminentes da União Europeia (EU), notadamente Alemanha e França?

Em contrapartida a um eventual apoio europeu a nossa inscrição à OCDE, o Brasil poderia se comprometer em retomar políticas ambientais de combate ao desmatamento na Amazônia. Aliado aos europeus, o Brasil poderia demover Washington de considerar humilhar Brasília dessa forma. Ah, tinha me esquecido: Bolsonaro queimou pontes com as lideranças alemã e francesa, a chanceler Angela Merkel e o presidente Emmanuel Macron, respectivamente, por conta de sua miopia ambiental, que afeta até mesmo seus aliados do agronegócio.

Ademais, o presidente estaria até mesmo considerando deixar de lado o acordo MERCOSUL-UE – que levou 20 anos para ser negociado – a favor de um tratado bilateral de comércio com os EUA, os mesmos que nos delegaram tratamento de segunda classe após tanto cedermos.

Pelo apoio americano a nosso ingresso na OCDE, concordamos até em renunciar ao status de país em desenvolvimento na Organização Mundial do Comércio (OMC), o que nos custou a aliança histórica com a Índia, que vetou a participação brasileira numa negociação.

Os governos petistas foram acusados por liberais de serem lenientes com as "traições" de aliados como o presidente boliviano Evo Morales – que nacionalizou operações da Petrobras em seu país – e Hugo Chavez, da Venezuela, em suas parecerias duvidosas com a estatal brasileira.

À época, a diplomacia lançava mão de argumentos que ecoavam a lógica da estabilidade hegemônica – um cânone do pensamento realista em Relações Internacionais. Segundo essa lógica, cabe, sim, a um país que ambiciona liderança – neste caso, o Brasil – ser condescendente com vizinhos em nome de hegemonia – neste caso, na América do Sul.

Chegou a vez de os liberais cortarem na própria carne e criticarem com mais veemência a política externa de um governo que apoiam por conveniência. Afinal, não há teoria de Relações Internacionais que justifique, por parte de um país do porte do Brasil, a continuidade de tamanha subserviência a Trump.

* Vinícius Rodrigues Vieira é professor visitante do Departamento de Relações Internacionais da USP.

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Este é um blog coletivo que pretende contribuir, sob diversos olhares – da comunicação à psicanálise, da ciência política à sociologia, do direito à economia –, para explicar o fenômeno da nova política. O "Entendendo Bolsonaro" do título indica um referencial, mas não restringe o escopo analítico. Toda semana, pesquisadoras e pesquisadores serão convidados a trazer suas reflexões. O compromisso é com um conteúdo acadêmico traduzido para o público amplo, num tom sereno que favoreça o debate de ideias. Convidamos você a nos acompanhar e a interagir conosco.

 

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