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Novo partido de Bolsonaro ecoa valores do nacionalismo branco

Entendendo Bolsonaro

25/11/2019 02h06

(Crédito: Orlando Brito)

[RESUMO] A Aliança pelo Brasil, partido fundado pelo presidente Jair Bolsonaro, tem como base o mesmo discurso do nacionalismo branco de outros países como os EUA e a África do Sul sob o Apartheid. Ao definir o Brasil como essencialmente cristão, Bolsonaro e seus apoiadores ignoram as contribuições não ocidentais para nossa formação. Desse modo, para combater a Aliança, cabe à esquerda deixar de enfatizar políticas identitárias, voltando, portanto, os olhos ao universalismo que transcende fronteiras étnico-raciais e religiosas.

* Vinícius Rodrigues Vieira 

O novo partido do presidente Jair Bolsonaro, a Aliança pelo Brasil, foi lançado extraoficialmente na última quinta (21), quando se pôde, então, ter acesso ao seu programa.

Não há duvida: o episódio indica a consolidação de uma direita radical no país. Mas que direita é essa?

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Desde então, surgiram comparações da Aliança com o integralismo, a versão brasileira do fascismo, fundada nos anos 1930 sob liderança de Plínio Salgado e que segue ativa, com uma releitura para a política contemporânea.

No entanto, há evidências suficientes para dizer que o partido bolsonarista não é uma jabuticaba. A Aliança fala diretamente com a extrema-direita do século XXI, tendo claras afinidades com o nacionalismo branco, que defende a superioridade do ocidente sobre as demais partes do mundo, simbolizado hoje em escala global pelo resgate dos valores judaico-cristãos promovidos por Steve Bannon, ex-assessor do presidente americano Donald Trump e bastante ligado a Eduardo Bolsonaro, deputado federal e filho do inquilino do Palácio do Planalto.

Bannon, por sua vez, bebe da fonte de supremacistas brancos como aqueles que deram origem à Ku Klux Klan, organização que assassinava negros no sul dos Estados Unidos, e ao Apartheid, regime racista e segregacionista que colocava não brancos em posição de inferioridade na África do Sul entre 1948 e 1994, quando finalmente Nelson Mandela foi eleito presidente daquele país depois de amargar quase três décadas na prisão.

De fato, o seguinte trecho doprograma da Aliança me lembrou que o Apartheid era visto, como mostraremos adiante, como compatível com o cristianismo:

"Contra fatos, não há argumentos: o primeiro ato oficial celebrado em terras brasileiras foi uma Missa; o primeiro nome que nos foi atribuído, Terra de Santa Cruz; o primeiro processo de nossa alfabetização primária esteve a cargo de ordens religiosas; até hoje, são as devoções e os cultos populares que, em todas as regiões, dão vida, forma e cor ao povo brasileiro" (grifo nosso).

Seria leviano dizer que Bolsonaro e seus seguidores defendem o Apartheid, cuja ascensão e queda estão bem detalhados neste capítulo escrito por Analúcia Danilevicz Pereira, em livro publicado pela editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Do mesmo modo, ignorar as similaridades com os nacionalistas brancos da África do Sul — que até hoje veem aquele país como a terra que Deus lhes prometeu — me levaria a incorrer em desonestidade intelectual.

Ao colocar Deus — ou, melhor dizendo, uma versão bastante peculiar do Todo Poderoso, que está longe de ser consensual mesmo entre os cristãos, — acima de tudo e citar a missa celebrada em Porto Seguro a 26 de abril de 1500, o bolsonarismo busca um mito fundador que associa a chegada de europeus — brancos e cristãos — a estas terras com um destino. Assim, caberia à aliança cumpri-lo a todo custo.

Que destino é esse? Analisemos, primeiramente, a experiência sul-africana com mais detalhes. O manifesto de 1947 do Partido Nacional (National Party, conhecido pela sigla NP) lançou as bases para o Apartheid, que consistia em legalizar a segregação entre brancos e não brancos presente desde o período colonial e reforçada a partir de 1910, quando a então União Sul-Africana tornou-se independente do Reino Unido — a última das potências coloniais europeias a dominar aquela região do planeta.

O NP representava os interesses de brancos de origem holandesa, principalmente, mas também alemã e francesa — os chamados afrikaners, que mantiveram uma identidade distinta dos britânicos que passaram a dominar a região no século XIX, mas que, na prática, mantiveram a lógica segregacionista.

Conforme o manifesto de 1947, o Apartheid seria "…um conceito historicamente derivado da experiência da população branca estabelecida do país [ou seja, os afrikaners], estando em harmonia com princípios cristãos como justiça e equidade". É uma política que confere a si o papel de preservar e salvaguardar a identidade racial da população branca do país".

O manifesto segue sugerindo que não brancos fossem eles mestiços ou descendentes apenas de tribos africanas já existentes, teriam melhores oportunidades de progresso caso fossem segregados.

Diferentemente do que o bolsonarismo pensa a respeito do Brasil, o NP, portanto, reconhecia que a África do Sul era um caldeirão cultural cujos ingredientes, porém, jamais poderiam se misturar, e estavam naturalmente hierarquizados, com tudo aquilo de origem europeia no topo. Para a Aliança, há também uma hierarquia, mas sem o reconhecimento de elementos não ocidentais à nossa formação.

De fato, não há uma linha sequer em seu programa que se refira aos negros escravizados, indígenas dizimados —reencarnados pelo integralismo no grito "anauê"—, e imigrantes empobrecidos que aqui chegaram desde o século XIX vindos não apenas da Europa, mas também do mundo árabe-muçulmano e da Ásia. Esses elementos todos não importam porque, conforme expressa a Aliança:

"A relação entre esta Nação e Cristo é intrínseca, fundante e inseparável. Por esse motivo, o partido toma como seus os valores fundantes do Evangelho e da Civilização Ocidental, herdeira do virtuoso encontro entre as cidades de Jerusalém, de Atenas e de Roma, ciente de que o povo brasileiro acredita que Deus é o garantidor do verdadeiro desenvolvimento humano" (grifo nosso).

Interessantemente, diferentemente de Bannon, Bolsonaro e seus seguidores não fazem referência ao componente judeu da civilização ocidental à exceção do trecho em que ressaltam a necessidade de retomar a moral judaico-cristã, embora a menção a Jerusalém — até hoje reivindicada como Israel como sua capital — seja um reconhecimento — bastante marginal, diga-se — do papel do povo hebreu nessa narrativa. Conforme escrito no programa:

"O partido se compromete a lutar, na cultura, pela restauração dos valores tradicionais do Brasil (…). A restauração da cultura envolve, ainda, o reconhecimento a tudo que de bom herdamos de outras nações, a exemplo das tradições lusitanas e hispânicas, do Direito Romano, da filosofia grega, da moral judaico-cristã, e ainda aquilo que o Brasil pode aprender, no presente, com outros povos, com adaptação à nossa realidade e aos nossos valores – pois, como diz São Paulo: 'examinai todas as coisas, ficai com o que é bom' (I Tessalonicenses 5,21)" (grifos nossos).

A pretensa abertura à contribuição de outros povos tem claros limites, dados pelo trecho inicial do programa, que coloca o cristianismo como central ao Brasil. Coincidência ou não, um dos potenciais adversários de Bolsonaro em 2022, o apresentador Luciano Huck, que procura se consolidar como alternativa centrista, tem origem judaica e parece fazer questão que seus filhos sigam tal tradição religiosa.

Com o manifesto da Aliança, Bolsonaro questiona a legitimidade de termos, no Planalto, um não-cristão, como, aliás, já foi feito em eleições passadas, como em 2010, quando Dilma Rousseff precisou enfatizar diversas vezes sua "formação católica".

Estamos vendo bruxas onde elas não existem? Sem medo de errar, digo que a dimensão identitária do bolsonarismo já se manifestava na campanha presidencial de 2018 e surgiu com clareza no discurso de posse do chanceler Ernesto Araújo, em janeiro de 2019.

Conforme escrevi à época, Araújo esboçava ali uma concepção de identidade nacional em que elementos não europeus teriam nenhum papel ou, no mínimo, estariam à margem do Brasil ocidental que não é assim considerado em nenhum lugar do mundo senão nas mentes daqueles que sofridamente buscam conferir substância intelectual a Bolsonaro.

Com a Aliança pelo Brasil, o país entra definitivamente na era da política identitária, estratégia que, conforme a crítica de intelectuais como o americano Mark Lilla, foi inaugurada pela esquerda ao priorizar as legítimas lutas por igualdade de gênero, etnia e raça em detrimento daquilo que parece ser o melhor caminho para fazer frente aos extremos: a busca por políticas universais, respeitando, claro, a individualidade de cada um.

De fato, o presidente Bolsonaro não apenas ganhou as eleições por causa de um vácuo de poder em meio a escândalos de corrupção e crise econômica, mas também porque, desde a redemocratização, foi posta em xeque a narrativa de democracia racial, que, para o bem ou para o mal, dava coerência à ideia de nação, necessária para a coesão social embora camufle tensões e injustiças sociais.

Como Darcy Ribeiro indicava, uma democracia racial de fato só se realizaria na existência de uma democracia social, a tão sonhada igualdade de oportunidades que a ditadura militar tornou mais distante.

Portanto, a proposição de que somos uma democracia racial erodiu ao longo dos últimos 30 anos. Porém, jogou-se fora o bebê com a água suja da banheira, como também já argumentei no livro Democracia Racial, do Discurso à Realidade, publicado em 2008.

Isso porque setores à esquerda e até mesmo centristas passaram a enfatizar a construção de uma identidade negra —isto é, de matriz africana — entre os pretos e pardos — classificações oficiais do censo — ainda que, no Brasil, cor de pele jamais tenha sido um indicativo de afiliação cultural embora seja desde sempre um elemento de hierarquização social, conforme demonstrei no mesmo livro.

O debate sobre a relação entre a discriminação com base na aparência e a rejeição às contribuições africanas à formação do Brasil demanda um artigo à parte dada sua complexidade.

Por ora, digo que, sem reconsiderar seriamente a retomada da democracia racial ou ideia parecida — não como projeto que camufla o racismo, mas sim como ideal a ser atingido por meio do reconhecimento das desigualdades que estão na origem do Brasil, com oportunidades iguais a todos —, aqueles que se opõem ao bolsonarismo vão patinar ao combater um movimento político que não mais teme expressar suas bases sectárias e segregacionistas.

Seu contraponto é a defesa de liberdades e garantias individuais universais, em meio a uma narrativa nacional mais inclusiva possível. Talvez São Paulo — citado pelos bolsonaristas — esteja certo: "examinai todas as coisas, ficai com o que é bom". Vale para a religião, vale para a direita e, portanto, para a esquerda também.

* Vinícius Rodrigues Vieira é professor visitante do Departamento de Relações Internacionais da USP.

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Este é um blog coletivo que pretende contribuir, sob diversos olhares – da comunicação à psicanálise, da ciência política à sociologia, do direito à economia –, para explicar o fenômeno da nova política. O "Entendendo Bolsonaro" do título indica um referencial, mas não restringe o escopo analítico. Toda semana, pesquisadoras e pesquisadores serão convidados a trazer suas reflexões. O compromisso é com um conteúdo acadêmico traduzido para o público amplo, num tom sereno que favoreça o debate de ideias. Convidamos você a nos acompanhar e a interagir conosco.

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