Utopia e pandemia: é tempo para o campo democrático superar o passado
Entendendo Bolsonaro
17/05/2020 19h04
Em 2016, o retrato de um fim. A sociedade está cindida, e novos consensos democráticos não serão possíveis com base em horizontes passados (Crédito: Juca Varella/Agência Brasil)
* Igor Tadeu Camilo Rocha
O mundo em 2020 passa por uma pandemia, decerto a mais intensa que já passamos nos últimos 100 anos. Às trágicas e irreparáveis perdas humanas – infelizmente desrespeitadas e minimizadas diariamente por muitos, de figuras públicas como o presidente do Brasil e membros do governo, até as quase semanais "carreatas da morte", que desafiam a doença e a democracia – se soma um cenário grande de incertezas.
Hoje se pensa em como será o mundo pós-Covid-19. Blanko Milanovic fala de uma "pandemia" de colapsos sociais em muitos países em reação a um "novo normal" diferente dos padrões de consumo do mundo globalizado, dos últimos 40 anos.
Byung-Chul Han já fala num "mundo pós-ocidental", no qual as respostas dadas por países como China e Coreia do Sul ao novo coronavírus provocarão uma mudança drástica no que chamamos de "ordem mundial".
Fala-se mesmo que o século XXI começa, de fato, agora, dialogando com as temporalidades construídas na famosa trilogia de Eric Hobsbawm. Afinal, se os critérios que o autor utilizou para formular as ideias de "longo século XIX" (1789-1914) e "breve século XX" (1918-1989) foram grandes mudanças nas conjunturas globais, não restam dúvidas de que estamos diante de uma.
Mas como será o Brasil nessa nova grande conjuntura, num século que, por essa perspectiva, ainda começará? Certamente, teremos um país diferente quando as duas pandemias que nos assolam – a da Covid-19 e a da extrema direita populista, na forma do bolsonarismo – passarem. E elas vão passar.
E, quando passarem, exigirão respostas políticas diferentes. Sobretudo a questão política aqui levantada exigirá respostas desde agora a fim de enfrentar o bolsonarismo no debate público e na construção de lideranças e agendas políticas viáveis e propositivas.
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Grosso modo, a cena política de oposição ao bolsonarismo se resume, hoje, a dois atores principais.
Um deles é o chamado Centro, que, como já analisei neste blog, aposta numa narrativa de falsa simetria – o "doisladismo – para afirmar-se uma alternativa aos "extremos", bolsonarismo e petismo.
O outro é composto pelo PT, hegemônico na centro-esquerda – englobando, aqui, seus aliados à esquerda como o PSOL – e que, preso no mote de 2018 "ser feliz de novo", sustenta ilusões de retomar uma paisagem política extinta desde 2016, um discurso que classifico como "necrogovernismo".
Essas duas oposições conseguem errar nos mesmos pontos, só que de maneiras diferentes. Primeiro, erram sobre as razões do triunfo do bolsonarismo em 2018. E, segundo, exatamente por não o compreenderem, propõem alternativas distantes das expectativas e frustrações compartilhadas por aqueles que deram sustentação ao projeto da extrema direita.
Além disso, as narrativas do necrogovernismo e do doisladismo são bastante conservadoras, quer aceitem assim suas lideranças e apoiadores ou não. Por isso, tais frentes de oposição não conseguem oferecer nada diante de um adversário que, a seu modo, ofereceu uma promessa de implosão de um sistema político em estado de falência, amplamente rejeitado pelo eleitor médio.
O bolsonarismo é formado a partir de um conjunto de racionalidades anti-establishment ao menos na sua estética e retórica. Elas se sintetizam no bordão "mudar tudo isso que está aí", que conseguiu dotar sentido e organicidade às rejeições aos princípios liberais democráticos fragmentadas na sociedade brasileira.
Diferenciando-se das direitas tradicionais, o bolsonarismo traz um elemento disruptivo com a ordem que precisa ser constantemente reafirmado. Por essa chave, é possível entender as várias manifestações contra Congresso, STF e demais instituições democráticas.
Exemplo claro disso foi a já longínqua declaração, feita por Jair Bolsonaro antes da pandemia, de que teria vencido no primeiro turno o pleito de 2018, e isso não se confirmou devido a fraude dos adversários.
Qual motivo levaria um governo a colocar em xeque a lisura de uma eleição na qual foi eleito? A meu ver, isso denota o objetivo de reforçar sua imagem de sabotado ou perseguido por um ordenamento institucional. Essa ideia é um ponto-chave do pensamento bolsonarista.
Contudo, os diagnósticos tanto do necrogovernismo quanto do doisladismo sobre a origem desse conjunto de rejeições são bastantes problemáticos. O primeiro possui várias narrativas a respeito, como atribuir esse processo à campanha midiática que associou o PT à corrupção, ou ainda aos abusos politicamente intencionados da Operação Lava Jato, depois desvelados pelo site The Intercept.
Já o segundo atribui essas rejeições a, por exemplo, o descrédito da classe política causado pela corrupção (somente) petista e à crise econômica causada por más decisões dos governos do mesmo partido (somente deles, novamente).
Diante desses diagnósticos equivocados e/ou demasiado simplistas, as alternativas oferecidas à população por necrogovernismo e doisladismo, no seu cerne, formam aquilo que marca o conservadorismo de ambos: "Ser feliz de novo" ou "renovar suas lideranças políticas do topo à base" parece ser o mais longe que ambos conseguem chegar, narrativas cujo horizonte comum é alguma retomada do establishment político rejeitado pela massa da população. O que as diferencia é apenas o ponto referencial desse passado.
Observe-se, ainda, que estamos falando de um establishment tanto rejeitado quanto desgastado e que tratam-se de agendas que precisam olhar para um futuro próximo, tão incerto quanto sombrio, pós-Covid-19.
Ainda assim, o necrogovernismo promete um retorno a um Brasil localizado entre 2003 e 2013, em que as coisas melhoravam para todos, associando a ascensão da extrema direita a uma espécie de acidente histórico, incapaz de considerar as condições objetivas que possibilitaram tal fenômeno. Por essa narrativa, Junho de 2013, por exemplo, não teria sido nada além de um raio num céu azul – ou obra de uma conspiração estrangeira, como queiram.
Há, ainda, a ideia de atrelar o sucesso da extrema direita aos avanços sociais dos governos petistas. Assim, o bolsonarismo teria surgido somente pela rejeição de uma classe média tradicional a tais avanços, ou pela reação de uma "nova classe média" que viu neles apenas produto de méritos próprios.
A solução proposta nessa abordagem é conservadora, pois pauta-se numa promessa de retorno a 2003-2013 por reconhecimento aos avanços petistas ou pela nostalgia, curiosamente projetada num futuro próximo que viria após os danos sociais previsíveis da agenda neoliberal bolsonarista.
Já o doisladismo defende a restauração e reestruturação da democracia liberal que, no Brasil, como já dizia Sérgio Buarque de Holanda, jamais passou de uma brincadeira de mau gosto, pois nunca rompemos com práticas e estruturas que impedem o seu florescimento de fato.
Comparativamente ao necrogovernismo e ao doisladismo, o bolsonarismo tem uma vantagem enorme por ser disruptivo e, mais que isso, oferecer alternativas de futuro. Dito de outro modo, o bolsonarismo oferece uma "utopia", após superar estruturas do agora.
Como dito antes, o bolsonarismo organiza muitas racionalidades. Talvez seja possível organizá-las em dois pilares que sustentam sua retórica antissistema, mais do ponto de vista performático que do seu conteúdo e práticas: são o conservadorismo radicalizado e o ultraliberalismo econômico. Foi a junção desses elementos que ofereceu artifícios retóricos que sustentam o discurso de ruptura apresentando alternativa para o futuro aos que rejeitam as estruturas políticas tradicionais.
Pela via do conservadorismo radicalizado, o bolsonarismo promete a rejeição sistemática da modernidade – entendida aqui como o conjunto de instituições liberais – , chegando-se a um projeto de sociedade em estado policial permanente, estado em que há visceral punitivismo, aplicado a tudo e todos, desde que ameaçadores desse ordenamento.
Trata-se de uma visão quase religiosa da realidade que sustenta um projeto de organização social. Ele é atraente a uma sociedade desigual e violenta, que nunca se sentiu contemplada pelas promessas modernas das garantias e direitos das democracias liberais.
A própria percepção de que tais garantias são pertencentes a poucos reforça o ressentimento às instituições. Nesse conservadorismo visceral, se encontram, por vias distintas, aqueles que nunca se sentiram acolhidos por tais institutos democráticos com aqueles que se sentiram ameaçados quando alguns tiveram a eles um acesso mínimo.
Já pela via do ultraliberalismo econômico, o bolsonarismo oferece a destruição de qualquer resquício de welfare state – que nunca aconteceu no Brasil – materializado nos direitos pactuados na Constituição de 1988, como o SUS, a previdência social e o serviço público.
Propondo a destruição daquilo que, diante de poucas condições objetivas e da enorme desigualdade social brasileira, nunca contemplou a todos, esse outro pilar aparece como alternativa por construir sua própria versão do mito liberal da conquista de direitos segundo o mérito, "libertando" o indivíduo do jugo do poder público para ele obter aquilo que o estado lhe prometeu, sem jamais lhe dar.
Essa utopia de destruição, ao se realizar, abriria finalmente as portas a uma terra prometida pela teologia da prosperidade e pela ideologia neoliberal do empreendedorismo, juntamente com todo um campo de valores individualistas.
Ainda que a observação da realidade mostre que eles tragam pobreza e desigualdade, eles são sedutores a uma sociedade que nunca experimentou plenamente um estado de bem-estar no seu conjunto, e que também é, historicamente, posta na posição de objeto, e não de sujeito, das políticas de Estado
Concordando ou não com essa utopia, ela está posta, conquistou consciências e possui defensores. Para enfrentar o bolsonarismo, Centro ou PT precisam romper com o doisladismo e o necrogovernismo e serem, a seu modo, criativos politicamente e proporem seus Brasis possíveis entre nossas duas terríveis pandemias.
E, sim, precisam polarizar. Não só contra o bolsonarismo, mas também contra estruturas e consensos rejeitados por milhões que não se veem representados na política, desencadeando processos que vêm corroendo democracias pelo mundo pós-crise de 2008, e que terão ainda desdobramentos acirrados pelas condições que a pandemia nos impõe.
* Igor Tadeu Camilo Rocha é doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais.
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