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Mesmo sem timing, negacionismo de Bolsonaro é condição de sobrevivência

Entendendo Bolsonaro

14/06/2020 12h26

(Crédito: Sergio Lima/AFP)

* Clóvis Gruner

O Brasil é, hoje, responsável por cerca de 1/3 das mortes por coronavírus em todo o mundo. Não por acaso, o país, que já estava no radar desde a posse de Bolsonaro pelas seguidas ameaças à democracia, consolida-se como um pária internacional, depois que todas as medidas de combate à pandemia, uma após a outra, foram desqualificadas e rechaçadas pelo governo brasileiro.

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Já se falou em demasia que Bolsonaro, diferente de outros líderes, perdeu a oportunidade de turbinar sua popularidade apresentando-se como um estadista, preocupado e solidário às vítimas em meio àquela que já é a maior tragédia "natural" das últimas décadas.

Mesmo Trump, que começou desdenhando dos riscos e chegou a romper com a Organização Mundial da Saúde (OMS), agora, frente ao risco de ver frustrado o projeto de reeleição, adota a estratégia de mudar sua postura, ao menos em público, de que faz parte afastar sua imagem da do presidente brasileiro.

Bolsonaro, por outro lado, perdeu o timing.

A aposta no negacionismo,  dentro da lógica do bolsonarismo, fazia sentido em março ou abril, quando o presidente insistia que tudo não passava de uma "gripezinha" ou que já havíamos chegado ao pico da doença. Desde maio, e à medida que a curva de mortos crescia até chegarmos aos mais de 40 mil de agora, o discurso se tornou insustentável. E mesmo que ele quisesse, já não dá mais para posar de estadista.

A estratégia das últimas semanas passou a ser, principalmente, desresponsabilizar o governo e recrudescer o ataque a instituições como a OMS, mentindo e distorcendo evidências, como tem sido o hábito desde sempre.

No primeiro caso, Bolsonaro tem insistido que, de acordo com a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), de abril, cabe aos estados e municípios adotar o isolamento social, entre outras medidas de combate à pandemia. Além de desresponsabilizar o governo federal, a afirmação serve ainda para responsabilizar opositores pelos óbitos em seus respectivos estados, mirando as eleições de 2022.

Mas ela é mentirosa.

A decisão do STF não exime o governo da responsabilidade de atuar contra a disseminação da Covid-19. Ela reconhece, simplesmente, a autonomia e a legitimidade de estados e municípios de adotar medidas de combate à pandemia, não cabendo ao governo federal derrubá-las. Entre outras coisas, o Executivo federal poderia desenhar e coordenar diretrizes de isolamento a serem seguidas nacionalmente, além de executar e monitorar políticas de prevenção, em parceria com as secretarias estaduais de saúde.

No entanto, adotar qualquer dessas medidas foge à estratégia que o bolsonarismo vem desenhando desde a posse, e acentuada após o início da pandemia, de recusar publicamente o diálogo e o equilíbrio com as demais instituições e poderes da República, condição para seguir sustentando o discurso de um governo e um presidente antissistêmicos e sua cruzada contra as forças que pretendem constrangê-lo.

Mas mesmo essa postura não escapa às contradições. A postura beligerante sustentada em público é calculada para produzir os efeitos políticos de sempre, como animar a militância nas manifestações semanais contra a democracia, mas silencia, por exemplo, sobre as vitórias obtidas pelo governo junto à Corte, como a recente decisão de flexibilizar a Lei de Responsabilidade Fiscal e afastar a possibilidade de crime de responsabilidade em função do aumento de gastos durante a pandemia.

São igualmente mentirosas as razões dos ataques à OMS.

Bolsonaro ameaçou romper com a entidade se ela continuar seguindo "diretrizes ideológicas", indiferente ao fato de que isso isolaria o país, agravando ainda mais nosso quadro sanitário. E isso na mesma semana que Trump, que Bolsonaro macaqueia, usou o Brasil como um exemplo a não ser seguido no combate ao Sars-CoV-2.

O novo pretexto para desacreditar a OMS foi a declaração, confusa, da infectologista e chefe do programa de emergências, Maria Van Kerkhove, que a própria Organização já tratou de esclarecer. Mais uma vez, Bolsonaro atuou isoladamente na distorção dos dados e da declaração, usando-a para disseminar a versão segundo a qual a OMS mente, o isolamento é ineficaz e que espera uma retomada rápida das atividades econômicas.

Não é a primeira vez que faz isso. Em março, ele distorceu uma declaração de Tedros Adhanom, afirmando que o diretor-geral da entidade rejeitava medidas de isolamento em favor do emprego e da economia. Foi desmentido no dia seguinte. Em ambos os casos, Bolsonaro insiste na mentira porque, como afirmei anteriormente, desresponsabilizar-se é condição de sobrevivência política.

Na prática, a estratégia implica a indiferença para com as milhares de mortes presentes e as outras tantas que se somarão a elas. Vidas não importam a Bolsonaro, que quando deputado tripudiou de familiares em busca de seus mortos, oficialmente desaparecidos durante a ditadura, o tipo de coisa que só se explica pela personalidade autoritária somada à sua incapacidade de empatia.

Além do nosso isolamento. Um estadista, mesmo mediano, saberia que a estabilidade política e a retomada do crescimento econômico dependem, e muito, da imagem externa do país. Mas Bolsonaro não está preocupado com nada disso; o que o preocupa e do que se ocupa é seu projeto pessoal, político e autoritário de poder.

E, nesse quesito, a mobilização das suas redes de apoio é fundamental, e ela depende, em larga medida, de desacreditar poderes e instituições, transformando-os em inimigos. No recém-lançado "Ponto-final", o filósofo Marcos Nobre defende que Bolsonaro fez a opção pelo seu projeto autoritário, em detrimento das medidas de combate à pandemia. Em outras palavras, combater os efeitos da Covid-19 e tentar frear o número de óbitos representava um risco que Bolsonaro não pretendia, nem pretende, correr.

Mas a manutenção desse projeto passa, também, pelo isolamento do país. Bolsonaro não tem hoje um aliado de peso que o apoie incondicionalmente, e algumas das principais economias do mundo sinalizam, se não romper, mas diminuir o volume de negócios com o Brasil. Frente a isso, o presidente brasileiro sobe o tom e as ameaças, na esperança de uma sobrevida política sustentada pelo núcleo duro da militância, que o segue incondicionalmente em suas investidas contra a democracia e suas instituições.

O projeto autoritário do bolsonarismo depende, portanto, não apenas de condenar muito mais gente à morte, mas de nos condenar, a todos, a um retraimento e a uma crise econômica sem precedentes, mesmo para os padrões brasileiros. Não são apenas as opções de Bolsonaro que estão a se esgotar, as nossas também.

* Clóvis Gruner é historiador e professor do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná.

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Este é um blog coletivo que pretende contribuir, sob diversos olhares – da comunicação à psicanálise, da ciência política à sociologia, do direito à economia –, para explicar o fenômeno da nova política. O "Entendendo Bolsonaro" do título indica um referencial, mas não restringe o escopo analítico. Toda semana, pesquisadoras e pesquisadores serão convidados a trazer suas reflexões. O compromisso é com um conteúdo acadêmico traduzido para o público amplo, num tom sereno que favoreça o debate de ideias. Convidamos você a nos acompanhar e a interagir conosco.

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