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Entendendo Bolsonaro

Bolsonaro usa militares para resistir a cassação e impeachment

Entendendo Bolsonaro

13/06/2020 20h43

(Crédito: Fernando Frazão/Agência Brasil)

[RESUMO] Jair Bolsonaro e os generais que participam de seu governo insistem em interpretar o artigo 142 da Constituição, que versa sobre o papel das Forças Armadas, como base para golpear a democracia. Segundo o presidente, interpretação recente do Supremo Tribunal Federal (STF) indica que ele pode resistir a "julgamentos políticos", numa clara referência não somente à possível cassação da chapa Bolsonaro-Mourão no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), mas também a um processo de impeachment e, eventualmente, a eleições que venham a ser colocadas sob suspeita por bolsonaristas.

Vinícius Rodrigues Vieira

O presidente Jair Bolsonaro dá mostras que não pretende sair do Planalto tão cedo. Se não bastassem as suspeitas infundadas lançadas de tempos em tempos sobre o sistema eleitoral — um álibi antecipado para resistir ilegalmente a uma cada vez mais provável derrota em 2022 — , o capitão parece estar disposto a ir até as últimas consequências e se esconder atrás de militares caso sofra impeachment ou cassação.

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Tudo porque Bolsonaro, na prática, insiste em interpretar o artigo 142 da Constituição a seu bel-prazer. Já debati neste blog, em 29 de maio, o eventual uso do 142 para conferir verniz constitucional a um golpe de Estado, depois da defesa do "uso pontual" do artigo pelo jurista conservador Ives Gandra Martins, o que, na prática, atribui aos militares uma espécie de Poder Moderador quando houver discordâncias entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário.

Desde então o debate iniciado por Gandra circulou, levando o Partido Democrático Trabalhista (PDT) a inquirir o STF acerca do papel constitucional das Forças Armadas. Fux rechaçou a existência de qualquer Poder Moderador na República, inclusive da parte do próprio presidente, não apenas líder do Executivo, mas também chefe de Estado.

Em resposta à decisão de Fux, que ainda vai ser levada ao plenário do STF, Bolsonaro divulgou uma nota, assinada em conjunto com o vice-presidente, general Hamilton Mourão, e o Ministro da Defesa, o também general Fernando Azevedo e Silva, em que deixa claro que não vai aceitar ser removido do poder por "julgamentos políticos".

Isso tudo no mesmo dia em que a revista Veja publicou entrevista com o ministro-chefe da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos, que rechaçou a possibilidade de golpe militar. "O próprio presidente nunca pregou o golpe. Agora o outro lado tem de entender também o seguinte: não estica a corda", ameaçou Ramos.

Como dizem as três autoridades que subscrevem a nota, "As FFAA [Forças Armadas] do Brasil não cumprem ordens absurdas, como p. ex. [por exemplo] a tomada de poder. Também não aceitam tentativas de tomada de poder por outro Poder da República, ao arrepio das leis, ou por conta de julgamentos políticos" (grifo nosso).

Na imprensa, já circulam desde sexta-feira interpretações indicando o óbvio: os três signatários deixam claro que não vão acatar eventual decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que casse a chapa Bolsonaro-Mourão. Azevedo e Silva — o terceiro homem da nota  resistiria à ordem convocando as "FFAA".

Na qualidade de cidadão desta república, pergunto humildemente ao general Azevedo e Silva: Vossa Excelência faria o mesmo em caso de impeachment? Afinal, este é nada mais nada menos que um julgamento político. Ou, num cenário em que o presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM-RJ) tome coragem e paute um dos pedidos de impedimento e Bolsonaro acabe apeado do poder pelo Congresso Nacional, conforme os ritos constitucionais, Bolsonaro vai resistir à deposição convocando as "FFAA"? E se perder a reeleição em 2022, lançando suspeitas infundadas de fraude, como já fez o presidente em relação a urnas eletrônicas?

A pergunta é pertinente porque, ao endossar a nota de Fux, o triunvirato também lembra " … à nação brasileira que as Forças Armadas estão sob a autoridade suprema do presidente da República, de acordo com o Art. 142/CF". Na prática, Bolsonaro — com o apoio de seu vice e do ministro da Defesa — coloca-se como Poder Moderador. Se o presidente é o comandante supremo das "FFAA" e sofre um julgamento político que considera injusto embora lastreado na Constituição, pode ele convocar tropas em sua defesa?

Talvez Bolsonaro esteja copiando Dilma Rousseff, que, antes do impeachment em 2016, esteve sujeita à cassação de sua chapa com Michel Temer e, por meio de advogados do PT, solicitou um parecer a Dalmo Dallari, professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). O jurista concluiu que o TSE não tem competência para remover o presidente da República do cargo. O processo, julgado em 2017, manteve a legalidade da chapa, permitindo, assim, que o vice de Dilma, Michel Temer, continuasse na presidência após o impedimento da petista.

Ainda que a tese de Dallari  nome historicamente ligado à esquerda  sirva para Bolsonaro muito embora tenha sido feita sob medida para Dilma, a interpretação governista da interpretação de Fux sobre o artigo 142 da Constituição é tão esdrúxula do ponto de vista do Direito quanto é, segundo as regras do português, o emprego da sigla "FFAA" para se referir às Forças Armadas. A duplicação de letras nas siglas para indicar que as palavras originais estão no plural é prática corrente no espanhol, mas não na língua de Camões.

Já a Constituição — que deveria ser menos flexível que regras gramaticais — não permite ao presidente negar-se a cumprir ordens de outros poderes. Absurdo, portanto, não é um eventual impeachment ou cassação via TSE, medidas previstas no atual ordenamento jurídico, aprovado democraticamente. Absurdo foi Bolsonaro ter sido eleito sob a tutela explícita do então comandante do Exército, general Eduardo Villas-Bôas.

Conforme publicado pela CartaCapital em outubro de 2018, entre o primeiro e o segundo turno da eleição presidencial daquele ano, "quando Bolsonaro tomou uma facada, em 6 de setembro, altos oficiais haviam se rebelado e decidido ir às ruas. A ameaça de golpe era real. Como o então presidente Michel Temer não tinha autoridade moral para enquadrá-los, sobrou para [o ministro José Dias] Toffoli, que assumiria o comando do STF uma semana depois, descascar o abacaxi".

Toffoli, também em outubro de 2018, foi o responsável por colocar panos quentes e evitar qualquer punição ao coronel bolsonarista Antonio Carlos Alves Correia, que havia xingado e ameaçado a então presidente do TSE, Rosa Weber. O presidente do TSE lembrou que Villas-Bôas liderava 300 mil tropas armadas, em boa parte simpáticas a Bolsonaro.

Um resumo sobre a tutela militar a qual estamos sendo submetidos desde 2017 pelo menos foi feito pelo professor da UFRJ Eduardo da Costa Pinto. A tutela foi explicitada por Villas-Bôas em novembro de 2018, quando confessou que cogitou "intevir" com base na intepretação do artigo 142, agora rechaçada por Fux, caso em abril de 2018 o STF tivesse concedido habeas corpus ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, então pré-candidato do PT e líder nas pesquisas.

O STF, tudo indica, decidiu sob a mira de Villas-Bôas, porque Lula (independentemente do mérito de sua condenação) foi mantido atrás das grades, deixando o caminho aberto para Bolsonaro vencer em outubro. Ainda segundo a CartaCapital, "Costa Pinto observa que ao empossar Azevedo e Silva como ministro da Defesa, Bolsonaro reconheceu enigmaticamente quem merecia: 'Meu muito obrigado, comandante Villas Bôas. O que nós já conversamos morrerá entre nós. O senhor é um dos responsáveis por eu estar aqui".

Os generais já esticaram a corda há tempos quando se alinharam ao mau militar, capitão da reserva, expulso do Exército sob a suspeita de planejar atentados terroristas, e, na prática, o elevaram ao cargo máximo da República. Quem é agora capaz de puxar a corda de volta para o lado da soberania popular e constitucional?

Xuxa, a rainha dos baixinhos, já tinha alertado em 1987 num de seus "clássicos", "A Festa do Estica e Puxa", quando canta: "E os baixinhos vão chegando numa nave espacial/Tem até um escoteiro, vestido de general".

Seria bom se verdade fosse: caso os generais bolsonaristas tivessem a ética dos escoteiros, pautados pela solidariedade, não se submeteriam às ordens de um capitão que só nos torna "baixinhos" perante o mundo e nossa história. Assim, não estaríamos à beira de um despotismo nada esclarecido. Lá vêm os pigmeus, não numa nave, mas num tanque!

Vinícius Rodrigues Vieira é doutor em Relações Internacionais por Oxford e professor na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e na pós-graduação da FGV

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