Sem enfrentar o antipetismo, movimento dos '70%' pode ser tiro no pé
Entendendo Bolsonaro
15/06/2020 11h11
(Crédito: Marlene Bergamo/Folhapress)
* Igor Tadeu Camilo Rocha
Ao longo das últimas semanas, à medida que se aprofundou a tragédia político-sanitária do país, ganhou força a iniciativa "Somos 70%", movimento de oposição a Jair Bolsonaro e que faz alusão a recente pesquisa do Datafolha, na qual se aponta que a aprovação do presidente brasileiro não passa de 30%.
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Em entrevista à Veja, Eduardo Moreira, um dos líderes do movimento, ressalta que a ideia é buscar uma certa unidade entre os que rejeitam Bolsonaro. Diante da impossibilidade uma conciliação ideológica entre o vasto e heterogêneo campo dos que rejeitam o atual governo, a própria rejeição, nesse caso, é tida como elemento agregador contra o que podemos definir como um inimigo em comum.
Já existe forte adesão ao movimento – e outros semelhantes – quando vemos sua movimentação seja em grupos de WhatsApp, seja em redes sociais, como no grupo com aproximadamente 225 mil participantes até o momento, no Facebook.
O sucesso rápido, ainda que gere algum entusiasmo, também pede ponderações. A primeira, claro, se deve à própria precariedade intrínseca das alianças políticas voltadas contra um alvo determinado, que tendem necessariamente a ruir assim que ele é derrotado.
Um raciocínio nesse sentido pode ser feito quanto ao próprio bolsonarismo. Muitos que hoje se apresentam como oposição já admitiram ter votado e/ou apoiado o atual presidente, motivados pelo antipetismo. O exemplo de Luciano Huck é o mais conhecido, e o crescente número de matérias traçando perfis de ex-bolsonaristas sugere a densidade do fenômeno.
A segunda ponderação, com a qual me ocupo neste artigo de maneira mais detida, sintetizo na seguinte premissa: dificilmente será possível vencer o bolsonarismo na arena pública e na disputa política do Brasil sem se superar, ou ao menos enfrentar, o antipetismo.
Embora ele seja recente, historicamente, tem lastro numa tradição histórica da política brasileira, e por seu enraizamento pode perfeitamente servir ao próprio bolsonarismo para se renovar e permanecer no poder. Além disso, antipetismo serve de limitante no que diz respeito a pensar novas agendas e narrativas políticas que se tornem viáveis e conquistem espaço.
Ressalto, aqui, que superar o antipetismo não é "absolver" o PT de erros que o partido tenha cometido, sequer significa dispensar a tão falada necessidade de autocrítica do partido. Pelo contrário, o antipetismo é limitador mesmo de uma leitura crítica necessária a respeito do que significaram os governos petistas.
Uma explicação importante nesse sentido vem de artigo publicado em 2019 pelo professor e historiador Rodrigo Patto de Sá Mota (UFMG), cujo título é "Anticomunismo e Antipetismo na atual onda direitista". Resumidamente, o autor defende que tal como o tradicional anticomunismo arraigado na cultura política brasileira desde, pelo menos, os anos 1930, o antipetismo, na atualidade, funciona como um mobilizador fundamental das sensibilidades à direita do espectro político.
Politicamente, "anti" é um prefixo usado desde o século XIX para definir fenômenos políticos que ultrapassam substancialmente a oposição dentro dos limites das democracias modernas. "Mais do que a mera oposição a ideias ou a pessoas e projetos coletivos, os movimentos 'anti' constituem-se em fenômenos de teor mais visceral", no sentido de reduzirem o objeto de sua rejeição à figura de inimigo, cuja convivência no campo de disputas naturais à democracia é intolerável.
Um antifascista ou um anticomunista, exemplos de ideários políticos constituídos nesses moldes, entendem que fascismo ou comunismo, respectivamente, estão além dos limites aceitáveis às disputas naturais da política. Assim, eliminar – política e simbolicamente, no limite, fisicamente – o inimigo alvo dessa rejeição é preservar os fundamentos da própria sociedade.
Contudo, os "anti" diversos não se limitam a rejeições, já que também afirmam valores e princípios políticos. Citando novamente o antifascismo, são visíveis nos vários movimentos antifascistas críticas profundas ao capitalismo, representado como elemento que produz as condições objetivas para o surgimento dos fascismos. Assim, esses movimentos conseguem se articular fortemente com projetos de novas formas não capitalistas de organização social, como o comunismo e o anarquismo.
Algo similar acontece quando falamos tanto de anticomunismo quanto de antipetismo, pois em ambos vemos rejeições a certas agendas políticas juntamente com a afirmação de outras, de maneira complementar.
Segundo Rodrigo Patto de Sá Mota, existem três matrizes principais que sustentam os argumentos anticomunistas no Brasil, enraizados historicamente e que serviram de arcabouço ideológico que foi mobilizado em dois golpes pelos quais o país passou na sua história republicana (1937 e 1964), bem como nos movimentos políticos em torno deles.
São, no caso, as matrizes religiosa, conservadora/nacionalista e liberal. Não se tratam de divisões rígidas, mas são matrizes de argumentos que, na maioria das vezes, são sobrepostas.
A matriz cristã do anticomunismo, historicamente, tende a associar o comunismo a toda sorte de ameaça moral aos valores da "boa sociedade". Constrói-se nesse campo argumentativo a premissa de que corromper valores morais cristãos, bem como seu edifício central, a família, seria um elemento constitutivo do comunismo.
Por sua vez, a matriz nacionalista articula seu anticomunismo em torno da concepção de nação como um todo orgânico e harmônico, superior a qualquer tipo de conflito social. Desse modo, o próprio tensionamento das relações de classe associado intrinsecamente ao comunismo é representado como um elemento exótico, que produz desequilíbrios e desagregação interna quando permitido no corpo de um Estado-nação.
Finalmente, a matriz liberal do anticomunismo traz pelo menos duas facetas, uma política e outra econômica. A primeira associa o comunismo ao autoritarismo estatal e ditaduras, evocando-se, via de regra, exemplos do regime soviético, chinês, cubano, entre outros. A segunda faz o mesmo quanto a uma ideia de supressão da propriedade privada, além da defesa moral e ética do mercado e do mérito pelo trabalho como reguladores legítimos das sociedades.
A pulverização dessas linhas gerais em vários argumentos da direita política brasileira já vem de muito tempo, e é vista nos exemplos mais emblemáticos. No revisionismo histórico que justifica o golpe de 1964 pela "ameaça comunista" no governo João Goulart, até nos malabarismos retóricos como num artigo publicado em 2013, criticando a chamada PEC dos trabalhadores domésticos, aludindo a diversas imagens do socialismo.
Essas três grandes linhas gerais do anticomunismo, como disse, enraizadas no nosso vocabulário político, também aparecem sobrepostas nos argumentos antipetistas.
Assim como no anticomunismo, o antipetismo tem alguns argumentos de fundo religioso. Um exemplo é a teoria conspiratória da "ideologia de gênero", que ganhou grande repercussão a partir da militância de deputados fundamentalistas religiosos a partir de 2011, pautando a rejeição ao PT pelo pânico moral.
Defesa da família e uma resistência à suposta imposição de valores das agendas feminista e LGBT também compõem esse discurso, materializado, por exemplo, no suposto "kit gay" que teria sido distribuído em escolas, por iniciativa do partido e aliados, usado por Bolsonaro na campanha de 2018.
Isso é visível mesmo no discurso anticorrupção, no que toca uma ênfase dele no campo moral, intrinsecamente personalizado em figuras como o ex-presidente Lula – uma demonização, no caso – e/ou a pautas progressistas, no geral.
O aspecto de matriz liberal do antipetismo aparece também nas frentes política e econômica. A primeira, nas constantes alusões de ligações do partido a projetos tidos por autoritários, como tentativas de ligar o PT a grupos como a FARC ou à Venezuela, país este, ao que tudo indica, ocupante no imaginário político das direitas brasileiras do mesmo espaço já ocupado nos anos 1960 e 1970 por União Soviética e Cuba.
Por sua vez, a rejeição econômica opera tanto na eleição das virtudes do mercado em detrimento de uma quase que universal corrupção do Estado, quanto na estigmatização daquilo sintetizado no mote "a mamata acabou", terminologia que engloba de funcionários públicos a bolsistas de universidades, passando por beneficiários de programas como o Bolsa Família – não poucas vezes representado como formas de cooptação das massas ou puro populismo.
Por fim, o nacionalismo conservador é um elemento dos mais visíveis no bolsonarismo, e parte importante dessa narrativa antipetista. Talvez seja o elemento mais visível, já que separa vermelhos e verdes-e-amarelos nas ruas de todas as cidades brasileiras, nos últimos anos.
Por essa chave, defende-se a ideia de que o PT e as esquerdas introduziram no país uma tensão de classes e grupos, e com ela subversão da ordem e uma divisão social. O "povo brasileiro" em detrimento de outros povos, evocado por Weintraub na reunião de 22 de abril, é um importante exemplo dessa tópica discursiva.
Dito isso, é necessário responder sobre o porquê do antibolsonarismo precisar enfrentar o antipetismo e, numa perspectiva ideal, romper com ele. A resposta é que as características discursivas do antipetismo se encaixam melhor com o bolsonarismo que com as tentativas de lhe fazer oposição.
Noutro artigo que escrevi para este blog, argumentei que o ultraliberalismo – cujos elementos vão da concepção quase teológica da meritocracia e rejeição do Estado como agente em proporcionar melhorias sociais – e o conservadorismo radicalizado – expresso no punitivismo e moralismo como ideais de ordenamento social – formam os pilares da utopia de destruição do bolsonarismo, formadora de sua agenda e que realça sua estética disruptiva.
E o antipetismo, grosso modo, se dirige contra qualquer elemento que pareça progressista em termos de agendas políticas. Extrapola o partido como alvo, pois mesmo as críticas necessárias a ele ficam imersas num mar de imagens difusas, dúbias e até mesmo falsas criadas pelo antipetismo.
No seu uso pelo bolsonarismo, o antipetismo é evocável para tudo que pareça remeter ao projeto de Brasil com o qual a retórica bolsonarista diz querer romper. Assim, ele é dotado de plasticidade e pode ser redirecionado a outros adversários do bolsonarismo. É simbólico, nesse sentido, que militantes bolsonaristas "acusem" novos críticos do presidente como sendo "de esquerda" ou "petistas". Nessa acepção, são considerados sinônimos. No limite, associados à corrupção e a forças que impedem mudanças maiores e desejáveis ao país.
Sem enfrentar o antipetismo, os tais 70% se revelarão um emaranhado incoerente de narrativas difusas, dentro das quais não falta espaço para novos votos em Bolsonaro por "falta de opção", "mudar o que está aí" ou "impedir a volta do PT", entendendo que "PT" pode ser literalmente qualquer oposição ao bolsonarismo.
Isso tende a acontecer na medida em que a narrativa dos 70% se dispuser somente a explorar a insatisfação eleitoral, natural em tempos de crise, e não aspectos mais profundos das culturas políticas brasileiras e sensibilidades tendentes às mais variadas formas de discurso reacionário.
Fica a pergunta se figuras que disputam pela via progressista a insatisfação ao bolsonarismo estariam dispostas a fazer esse questionamento ou apenas a competir por protagonismo eleitoral com o PT. A meu ver, a segunda alternativa é das mais temerárias.
* Igor Tadeu Camilo Rocha é doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais.
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