Caso Queiroz: Bolsonaro vira boi de piranha da direita
Entendendo Bolsonaro
27/06/2020 13h58
Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão: Caso Queiroz pode evidenciar o limite do apoio estratégico dos militares ao capitão (Crédito: Valter Campanato/Agência Brasil).
[RESUMO] Na tentativa de sobreviver até 2022 no Planalto, o presidente Jair Bolsonaro modera sua retórica. Isso porque seu impeachment necessariamente não interessa à direita, que, mantendo o capitão na presidência, pavimenta o caminho para continuar no poder durante boa parte desta década sob o comando do candidatíssimo juiz Sergio Moro. Ou, no caso de eventual impedimento do presidente em virtude do que Fabrício Queiroz venha a revelar em breve, o general Hamilton Mourão comandaria o processo que, tudo indica, pretende revisar o contrato social imposto pela Constituição de 1988.
* Vinícius Rodrigues Vieira
A era das bravatas parece ter acabado, mas o domínio da direita na política nacional está apenas no começo e nada que a esquerda e autodeclarados centro-esquerdistas façam vai reverter este quadro. Esse é o resumo da pantomima trágica que o país encena em meio à pandemia, cujo ato hoje representado no palco Brasil poderia se chamar "Jair, o boi de piranha".
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Explico-me: o presidente Jair Bolsonaro atualmente desfruta da condição de sobrevivente no cargo máximo da República depois de um bombardeio iniciado pela saída de Sergio Moro do Ministério da Justiça e coroado pela prisão de Fabrício Queiroz, ex-assessor do filho zero 1, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), quando este era deputado estadual no Rio de Janeiro.
Muitos esperavam (inclusive eu) que a saída de Sergio Moro do Ministério da Justiça seria a gota d'água para que os militares abandonassem o (des)governo que potencializou a pandemia do coronavírus em Terra Brasilis. Enganamo-nos miseravelmente.
Porém, à luz dos movimentos da caserna e boinas-verdes da reserva no governo, seria igualmente errôneo dizer que as Forças Armadas estão fechadas com Bolsonaro até o fim. Conforme amplamente relatado na imprensa, ninguém entre os fardados parece estar disposto a apoiar um presidente que sacrifica tudo para proteger os filhos.
Sem as Forças Armadas, restaria a Bolsonaro – numa lógica kamikaze – colocar ainda mais fogo no país, convocando milicianos – como já salientado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes – e também policiais militares para defender seu governo.
Porém, Jair não vai fazer isso. Ele acredita ter uma missão divina na presidência e, para não ser devorado agora, moderou o tom e ajoelhou-se no altar dos militares. Para tanto, deu – ainda que temporariamente – as costas à seita olavista do fim dos dias – ou, melhor dizendo, da destruição do Brasil. Nomeou um oficial da reserva da Marinha e de perfil técnico (embora, obviamente, de direita) para o Ministério da Educação.
Enquanto isso, Moro – em sua nova função de colunista da revista Crusoé, claramente alinhada ao lavajatismo -prepara o terreno para 2022. Sinalizou a oficiais da ativa e reserva que conta com sua honra no futuro. Candidatíssimo, o ex-juiz deve nadar de braçada em 2022 frente a um Bolsonaro lastreado apenas por eleitores pobres gratos pela muito provável institucionalização do auxílio emergencial que, unido ao Bolsa Família, deve ganhar o rótulo de "Renda Brasil".
E a oposição? Ora, esta segue fragmentada e surrada pelo histórico de corrupção e, portanto, sem musculatura para 2022, não obstante o lançamento de diversas frentes de defesa da democracia, as quais, interessantemente, não dialogam com dois segmentos que emergiram das contradições da Nova República: o agronegócio e os evangélicos. Não à toa, ambos foram cruciais para a vitória de Bolsonaro em 2018, tal como devem, obrigatoriamente, fazer parte da base de apoio de qualquer eventual inquilino do Planalto num futuro próximo.
Política é como nuvem, diria o lugar-comum: sempre muda, ora clara, ora escura. Mas, pelo carregar do andor, cedo ou tarde, Bolsonaro será devorado pelas piranhas – ou seja, os esqueletos vivos no armário de deputado do baixo-clero e ligações perigosas em terras fluminenses – e terá cumprido o papel nada divino ao qual foi ungido pela aliança entre lavajatistas, militares e pretensos liberais: fazer a transição da Nova República, cujos governos claramente flertaram com uma social-democracia tropical e incompleta, para algo como uma "Velha República Nova", em que o contrato social de 1988 provavelmente será revisado sob uma perspectiva liberal-conservadora, em que direitos econômicos e sociais são, na prática, ignorados.
Tal roteiro estará em marcha a partir de 2022. Isso porque Bolsonaro continua a assegurar índices de aprovação estáveis em 32%, segundo o Datafolha, sugerindo que um impeachment segue fora do radar. Eventual cassação da chapa no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) também fica distante dos sonhos dos opositores considerando a moderação do presidente nos últimos dias, para não citar que, nessa hipótese, Mourão também estaria fora, prejudicando, assim, a continuidade das claras tendências à direita que antecedem 2018, como ficou claro em 2014 com a eleição de um Congresso Nacional assaz conservador.
Mas, se Queiroz e seu ex-protetor, o advogado da família Bolsonaro Frederick Wassef, abrirem a boca e escancarem as ligações entre o clã Bolsonaro e o universo miliciano do Rio de Janeiro, o cenário pode mudar. Nesse caso, o presidente vira boi de piranha antes de 2022, Mourão assume o gabinete presidencial. Assim, da barbárie de 50 mil mortos levados pela "gripezinha" bolsonarista, talvez passemos a um despotismo esclarecido – ou seja, um governo menos irracional, mas com persistentes traços autoritários.
Afinal, Mourão, não custa nada lembrar, já defendeu o papel moderador das Forças Armadas com base na interpretação canhestra do artigo 142 da Constituição e era referência de grupos que defendiam, já em 2017, uma "intervenção militar constitucional".
Nesse cenário, Mourão e/ou Moro disputarão a preferência do eleitorado de direita em 2022. O impeachment seria uma derrota para os lavajatistas, já que o ex-juiz seria desidratado politicamente. Isso porque, caso assuma a presidência, Mourão vai lançar mão de sua nada negligenciável capacidade de articulador de tendências hoje irreconciliáveis sob a geleia-geral bolsonarista, como o alinhamento à China comunista e a busca por maior crescimento econômico via reformas ditas liberais.
Com pitadas de pragmatismo em economia e na política externa e autoritarismo doméstico, com oposição a protestos, o atual vice, uma vez tornado titular, representaria a volta ao normal da História do Brasil: a ordem e progresso que busca crescimento econômico enquanto ignora o andar de baixo.
A própria tolerância dos militares à calamidade da Covid sugere isso. Afinal, hoje quem mais morre de Covid-19 são os mais pobres, feitos da mesma carne barata sobre a qual o país foi construído.
Moro não é Mouro, mas Mourão é seu superlativo de quepe, capaz de se impor perante tribunais políticos ou não, para desespero de esquerdistas, lavajatistas, bolsonaristas-raiz e seus primos olavistas.
* Vinícius Rodrigues Vieira é doutor em Relações Internacionais por Oxford e professor na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e na pós-graduação da FGV
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