Carmen Silva: “Direito à moradia digna é o primeiro ponto a ser olhado”
Entendendo Bolsonaro
31/10/2020 23h30
"Que bom seria termos um país no qual as cotas não fossem necessárias, mas esse não é o caso do Brasil" (Crédito: Reprodução)
[RESUMO] Esta é a nona entrevista de uma série iniciada pelo blog, voltada às eleições municipais de 2020. Ao longo dessas semanas, estamos conversando com candidatas e candidatos, de diferentes partidos, para conhecer a sua visão de cidade e de que maneira estas figuras pretendem contribuir para a solução dos múltiplos impasses pelos quais atravessa o Brasil. As entrevistas estão sendo transmitidas ao vivo no perfil do jornalista Cesar Calejon, no Instagram. Acompanhe!
* Cesar Calejon
Nona entrevistada do Especial Eleições do blog, a baiana Carmen da Silva Ferreira é a líder do Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC), iniciativa social de luta por habitação que atua na região central de São Paulo, e candidata a vereadora pelo PT na capital paulista.
A candidata aponta a desigualdade social e a falta de moradia digna como os principais problemas de São Paulo. "O principal problema de São Paulo é a desigualdade. Nós temos na cidade (um grupo) de pessoas vulneráveis e invisíveis. São muitas pessoas, em todas as regiões da cidade, vivendo em situação de calamidade. Nesse sentido, o direito à moradia digna é o primeiro ponto a ser olhado. As pessoas ainda vivem em palafitas, coabitações e estão sendo deslocadas, cada vez mais, para bem longe (das áreas que têm os metros quadrados mais caros da cidade)."
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Durante uma vida inteira dedicada ao ativismo social, Carmen elaborou uma metodologia para enfrentar as necessidades habitacionais da cidade e gerir as ocupações, como a Ocupação 9 de Julho, que além de abrigar as famílias também estimulam a participação democrática e o debate político, incluindo as pessoas na vida sociopolítica da nação.
"Há trinta anos eu participo de movimentos sociais para reduzir o déficit habitacional. As pessoas precisam entender que ninguém quer morar de graça ou levar vantagem, mas os cidadãos precisam de uma moradia digna, sim. Existe quase um milhão de pessoas sem um teto sobre as suas cabeças e, somente na cidade de São Paulo, temos aproximadamente 400 mil imóveis abandonados que poderiam exercer a sua função social de abrigar estas famílias", explica a líder comunitária, que também ressalta os despejos que estão acontecendo mesmo em meio à crise sanitária mais aguda que atingiu o país nos últimos cem anos.
"As pessoas estão sendo despejadas mesmo durante a pandemia, o que é um absurdo. Exatamente por isso, estamos articulando a campanha Despejo Zero junto a diversas entidades. Temos medidas em andamento e áreas já compradas. Por exemplo, aqui no centro da cidade de São Paulo, existem quinze prédios que foram comprados pela Cohab (Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo) e seriam (destinados) para a moradia de locação social e estão abandonados ou fechados sem nenhuma solução", acrescenta.
"Nós temos áreas inteiras de operação urbana", prossegue ela, "como no (bairro da) Água Espraiada, por exemplo, onde existem oito mil famílias que foram deslocadas e estão espalhadas pela cidade ou na própria região, mas vivendo em cima de palafitas. Isso com os terrenos já comprados. Por que não construir as moradias? Outro exemplo é o PIU (Projeto de Intervenção Urbana) Vila Leopoldina. As famílias estão impedidas de ocuparem as suas habitações, porque os projetos não saem das gavetas dos vereadores que hoje estão na Câmara (Municipal de São Paulo). Eles não querem misturar os trabalhadores de baixa renda com a população rica da cidade. Então, os projetos que já têm os terrenos comprados e foram licenciados também não andam".
Ainda de acordo com ela, existem grupos que atuam como máfias hoje na região central da cidade de São Paulo com o aval da Prefeitura. "Um único dono tem muitos imóveis, alguns que estão devendo o IPTU, inclusive. Em alguns casos, a dívida supera o próprio valor venal do imóvel. O problema é que, quando a Prefeitura (de São Paulo) resolve desapropriar um prédio, entram em cena os peritos que supervalorizam os preços das unidades. Esse é um problema seriíssimo, porque eles acrescentam 300%, 400% a mais no valor, o que inviabiliza o processo. É uma máfia. Temos vários devedores de IPTU que continuam fazendo negócios com a Prefeitura", alerta ela, que nos últimos anos sofreu diferentes tipos de tentativas de intimidação.
Outra bandeira da sua candidatura à Câmara Municipal de São Paulo, as creches noturnas são fundamentais paras as mães que trabalham em horários alternativos. "Nós precisamos ter creches noturnas. Existem profissionais, inclusive plantonistas da área de saúde, por exemplo, que trabalham nos hospitais à noite. Como elas fazem para trabalhar se não têm com quem deixar os filhos nesse período? Os horários atuais das creches caracterizam uma lógica perversa. As creches devem acompanhar o ritmo de trabalho dessas mães", afirma Carmen, que também defende as cotas reparadoras nas empresas e universidades e o auxílio para as famílias que tiveram entes encarcerados no sistema prisional da cidade.
"Eu tenho um grupo de apoiadores que me ajuda com essa pauta das cotas, que surgiu da minha vivência em luta ao longo das décadas, porque não é justo que as pessoas não tenham as condições para se desenvolverem. Por exemplo, quem oferece emprego para as pessoas trans? Como essas pessoas estão sobrevivendo? Não dói ver as mulheres indígenas jogadas nas calçadas vendendo o artesanato delas sem nenhuma opção? Ou a própria mulher preta, quando a gente vai fazer uma entrevista de trabalho e sabemos que não seremos avaliadas da mesma maneira que as outras candidatas. Então, as empresas e as universidades devem adotar as cotas para lidar com esse problema. Que bom seria termos um país no qual as cotas não fossem necessárias, mas esse não é o caso do Brasil", pondera a ativista.
Sobre o apoio às mulheres e mães de presos, ela ressalta que "deve vir, primeiramente, por meio do afeto, porque é um baque, uma mulher, uma família e uma mãe ter o seu filho ou esposo presos. Isso abala totalmente a estrutura familiar. (…) As pessoas ficam muito perdidas e precisam ser amparadas de todas as formas para serem reconduzidas para uma atividade escolar e profissional. Basta de a gente criar filho para ir para a cadeia. (…) A minha filha, a Preta Ferreira, está desenvolvendo um projeto com algumas redes sociais para amparar as mulheres egressas, por exemplo. Esse tipo de iniciativa é fundamental para manter a estrutura familiar e garantir que as pessoas consigam seguir adiante. Atuamos em rede e esse pacto solidário é o caminho".
A agricultura familiar é outro tema de interesse da candidatura de Carmen Silva e ela tem experiência prática no assunto. "Nós temos alguns projetos dentro da ocupação 9 de julho, que é a nossa hora, a cozinha com vários parceiros, inclusive um grupo de artistas que vieram da Funarte (Fundação Nacional de Artes). A gente promove o apoio alimentar a todas as nossas famílias. Com os nossos eventos, a gente também promove a economia solidária e traz chefes (de cozinha) para ensinar técnicas e o não desperdício dos alimentos. Estamos multiplicando essa estrutura, porque o que é interessante para nós é a tecnologia social, a troca de informações e saberes. Precisamos incentivar a criação de hortas orgânicas nos terrenos abandonados da cidade. Eles podem servir de fontes de alimentos saudáveis para as famílias mais pobres. A nossa horta, por exemplo, já alimenta cerca de 40 pessoas. (…) Não basta somente falar, nós temos que executar".
Por fim, ela destaca a importância da valorização da cultura realmente popular brasileira e da capacitação e oferecimento de linhas de crédito especial para pequenos e médios empreendedores das periferias da cidade de São Paulo.
"Foi por meio da cultura que nós conseguimos mostrar à população brasileira quem somos nós e a nossa luta por moradia digna para todos os paulistanos. Quando a gente fala de cultura, isso não significa somente entretenimento ou visitação. Nós não queremos turismo predatório. Queremos a valorização dos nossos artistas populares. Por exemplo, nós temos artesãs do próprio povo. (…) Nós temos na periferia (da cidade de São Paulo) uma riqueza intensa. A cultura nos salva. Já o microcrédito é fundamental para que a nossa periferia ande com as próprias pernas e não seja explorada por negócios como esses aplicativos de entrega de comida. Vamos trabalhar muito arduamente nessas questões", conclui a candidata.
* Cesar Calejon é jornalista com especialização em Relações Internacionais pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e mestrando em Mudança Social e Participação Política pela Universidade de São Paulo (EACH-USP). É, também, autor do livro "A Ascensão do Bolsonarismo no Brasil do Século XXI" (Lura Editorial).
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