Brasil de Bolsonaro é case global de como unir incompetência e fanatismo
Entendendo Bolsonaro
03/01/2021 10h00
(Crédito: Mateus Bonomi/AGIF/Estadão Conteúdo)
* Igor Tadeu Camilo Rocha
Diante dos avanços na vacinação contra a covid-19 ao redor do mundo, vejo multiplicar-se uma análise que consiste em dizer que a péssima e absurda gestão de Jair Bolsonaro no enfrentamento da pandemia no Brasil se deve tão somente a sua inépcia para o cargo, e não tanto a questões ideológicas de sua figura política e de seu governo.
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As evidências da tese são mostradas na diversidade de perfis político-ideológicos dos governos de países que já estão adiantados anos-luz de nós em suas campanhas de vacinação contra o novo coronavírus. Vejamos alguns. Hungria, país governado pela extrema-direita, e Argentina ou México, governados por uma centro-esquerda, já começaram suas vacinações, algo que indica que entender a vacina como solução mais factível para o controle da pandemia independe do lugar nessa régua ideológica das democracias liberais. Tampouco o perfil populista iria interferir quanto a isso, já que os Estados Unidos, nos derradeiros dias do governo dito populista de Donald Trump, segue a pleno vapor em sua campanha de imunização em massa.
As crises econômica e política também parecem não explicar por si mesmas a péssima gestão do governo brasileiro, uma vez que países que passam por momentos turbulentos nesse campo parecem já terem se resolvido. A Venezuela, por exemplo, já firmou acordo para vacinar inicialmente 10 milhões de pessoas com a Sputnik V. Já a Bolívia, que passou por um golpe de Estado em 2019 e, depois, por uma tensa eleição em 2020, também já anunciou um acordo para começar a vacinar sua população.
Mesmo países em que o fundamentalismo religioso representa forte peso na sua política interna, como a Polônia, também começaram suas campanhas de vacinação. Da mesma forma, em nações com políticas reconhecidamente autoritárias, como a Rússia, a imunização já é realidade.
Enfim, a cada dia de atraso ou evento com o presidente Bolsonaro reunindo-se com dezenas de pessoas sem máscaras ou distanciamento, a cada polêmica ridícula sobre vacinas, assistimos à transformação do Brasil, país historicamente referência em vacinação, em exemplo internacional de como não agir no meio da pior crise sanitária dos últimos cem anos.
E devemos ser claros. Todo esse atraso acontece por opção do atual governo, com suas ações descoordenadas, omissões, cortes e desmonte da produção científica e no sistema de saúde, assim como uma inexistente gestão logística. Tudo isso indica haver incompetência e creio que isso seja ponto pacífico para a maioria, exceto a base mais fanática de apoiadores de Bolsonaro.
Parece correto dizer que ideologia política não parece ser um fator determinante ao redor do mundo para respostas boas ou ruins à pandemia. Mesmo no Brasil, seguem-se diariamente elogios sobre a gestão da pandemia dirigidos a governadores como João Doria (PSDB) e Flavio Dino (PC do B), de partidos de centro-direita e centro-esquerda, respectivamente. Estes, mesmo quando criticados, nem de longe o são por motivos que passam perto de negacionismo antivacina ou falas em tom de zombaria quanto às vítimas da covid-19. O mesmo pode ser dito do prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil (PSD).
O exemplo de Jair Bolsonaro, dessa maneira, consolida-se como um caso isolado sob qualquer ângulo que se observe na política. Nem mesmo alguns de seus antigos eleitores e apoiadores, como Luciano Huck ou João Amoedo, conseguem mais expressar publicamente qualquer coisa diferente de críticas duras e indignação. Entretanto, devemos tomar cuidado, pois essa leitura pode nos levar a uma análise despolitizada da gestão bolsonarista, sugerindo, incorretamente, que a ruindade do presidente brasileiro nada teria a ver com o complexo emaranhado ideológico que compõe o bolsonarismo como fenômeno político.
Nada mais distante da realidade. A atuação de Bolsonaro na pandemia explica muito sobre a sua figura política construída ao longo de toda a sua trajetória, e também do próprio bolsonarismo do ponto de vista político-ideológico. A pandemia da covid-19 funcionou como uma tempestade perfeita em que variados aspectos de Bolsonaro e do bolsonarismo, que se complementam e os tornam efetivos no debate público e disputas do poder, tornaram-se mais visíveis.
O primeiro aspecto – o que mais salta aos olhos – é a dimensão retórica e performática, que se deu de variadas formas. No início da crise, apareceu forçando a volta da normalidade e, paralelamente, foi voltando sua artilharia contra outros adversários como os governadores e prefeitos, imprensa, até finalmente chegarmos ao antagonismo contra a vacina.
Trata-se da face mais histérica, histriônica e paranoica do bolsonarismo, que compõe uma característica das extremas-direitas de possuírem um hiperidentitarismo, grosso modo materializado na sua constante necessidade de se distinguir. As polêmicas gratuitas e por vezes absurdas, baseadas em negacionismos, distorções da realidade e teorias conspiratórias, fazem parte do amplo escopo de artifícios mobilizados para isso. Também, o bolsonarismo se alimenta da forja permanente de novos inimigos, como se fosse golpeado e sabotado por todos os lados, o que justificaria sua postura autoritária e a constante representação do adversário como um sujeito a ser eliminado.
Esses dois aspectos, além de demarcadores da identidade do bolsonarismo politicamente, também compõem sua narrativa antissistêmica. Bolsonaro e todo o discurso político em torno de sua figura precisam sempre se afirmar como sendo "contra tudo isso que está aí", sem que isso contradiga, no atual momento, a posição de governo.
A crise da covid-19 tem sido um campo dos mais prolíficos para que essa dimensão ganhe diariamente novos contornos, nos seus embates contra a imprensa, com Doria e outros governadores, ou qualquer outro agente que questione sua gestão ou apresente alguma solução diferente das colocadas pelo governo ou apoiadores.
De fato, Bolsonaro apresentou soluções, ainda que elas comprovadamente não funcionassem, sendo o maior exemplo disso a sua constante insistência no tratamento da covid-19 com a hidroxicloroquina. Isso nos leva a um segundo componente do bolsonarismo, que acho adequado chamar de aspecto fundamentalista. Esse aspecto articula identitariamente as mencionadas rejeições e invenções de inimigos com o oferecimento de resoluções, esquemas e verdades "alternativas" para a crise.
Por "alternativas", entendemos aqui soluções como a própria cloroquina apesar de os "inimigos" mostrarem com artigos científicos que ela seria ineficaz contra a covid-19, por exemplo. E a insistência nessa narrativa que constrói um caráter quase religioso no bolsonarismo. Ele oferece sentido ao estado das coisas como estão, e dá forma a narrativas para as quais os fatos sistematicamente devem se curvar.
É necessária uma boa dose de teorias conspiratórias, fake news e a construção de um sistema de crenças no qual faça sentido que os graves problemas mostrados pelos inimigos (como cientistas, imprensa, governadores, prefeitos ou qualquer um que ache terrível chegarmos a 200 mil mortos nos próximos dias) não sejam tão graves assim, ou talvez sejam até inventados para prejudicar o "mito", e que as soluções dadas por ele sejam ungidas como únicas possíveis e autorizadas. Mas é necessário, também, algum vínculo com a realidade mais prática, o que nos leva a um terceiro aspecto que é o fato de Bolsonaro, ainda que aparentemente tenhamos esquecido disso por um tempo, seja um político com quase toda a sua trajetória construída no Centrão.
Por esse lado, podemos entender que parte das ações de Bolsonaro no curso da pandemia parece se voltar mais diretamente a evitar qualquer viabilidade de seu impeachment, ou ainda que os escândalos de corrupção envolvendo sua família tenham consequências maiores. Isso tem alguns efeitos práticos, como o fato presumível de que Bolsonaro jamais se sustentaria no poder tendo somente o volátil PSL e sua geração de outsiders de extrema-direita como base. Voltar para o Centrão também viabiliza um jogo constante de Bolsonaro com atores importantes da política brasileira que poderiam vir a pressioná-lo, ao vender uma suposta moderação.
Esse movimento de volta também vincula Bolsonaro e o bolsonarismo a interesses de elites econômicas do Brasil e realçam um quarto aspecto ideológico que baliza suas ações na pandemia: um ultraliberalismo econômico somado a uma ausência permanente de sensibilidade social, o que não deixa de ser uma marca de parte substantiva das elites econômicas de um dos últimos países a abolir a escravidão no mundo.
A narrativa da morte de pessoas x morte de CNPJs (desumanizando os primeiros e antropomorfizando/humanizando os segundos), defendida por Bolsonaro junto a empresários que o apoiam, traz uma materialidade econômica fundamental a esse emaranhado ideológico bolsonarista. Dessa maneira, a chave de leitura aqui pensada não discorda da ideia de que todo o caos gerado pela péssima gestão do governo brasileiro na atual crise se deve à inépcia do presidente e de seu gabinete ministerial, com destaque para o atual ministro da Saúde, que fracassa na compra de seringas.
Porém, mesmo a ruindade do governo Bolsonaro no enfrentamento da covid-19, amparada por alguns setores da sociedade e atores políticos no Brasil, é balizada ideologicamente. Essa incompetência, assim como tudo na política, tem pressupostos, objetivos e formas de pensar a realidade que são circunscritos por ideologias e tradições nos jogos de poder e de formas de ver e fazer a política.
Em suma, a atual tragédia brasileira é uma junção perfeita de coisas que já devíamos ter superado, enquanto país e democracia, há décadas, com problemas inéditos, potencializados por fatores do nosso tempo. É um conjunto de facetas tanto detestáveis quanto bem presentes historicamente na realidade brasileira, todas operando em sintonia na pior crise sanitária do século.
* Igor Tadeu Camilo Rocha é doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais.
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