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Entendendo Bolsonaro

Elitismo histórico explica tolerância à Vaza Jato

Entendendo Bolsonaro

05/09/2019 23h47

(Crédito: Sergio Moraes/Reuters)

*Cesar Calejon

Fui recentemente indagado, a respeito dos vazamentos da Vaza Jato, por qual motivo eles não causam uma reação social parecida com a de 2016, quando o então juiz Sergio Moro retirou o sigilo das conversas entre os ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff.

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Na época, a intenção de levar Lula para a Casa Civil foi vista, majoritariamente, com indignação. Imaginava-se uma manobra para conferir a ele o foro privilegiado.

Para relembrar: ainda em maio daquele ano, Romero Jucá, que naquela ocasião era senador da República (PMDB-RR), foi gravado em conversa com Sérgio Machado, ex-presidente da Transpetro, afirmando que o impeachment de Dilma era "a única saída" para "estancar a sangria" criada pela Lava Jato e que um grande acordo nacional era o único meio para delimitar a operação contra a corrupção. "Com o Supremo, com tudo […] Delimitava onde está. Pronto", explicou didaticamente o então senador.

Por que, então, a população brasileira, que alegadamente lutava contra a corrupção e se indignou com os diálogos entre Dilma e Lula, não se revoltou quando confrontada com provas de caráter tão cabal como estas? E por que não se abala agora, a ponto de protestar nas ruas, com os vazamentos do The Intercept?

A resposta para esta pergunta é complexa, mas, sem dúvida, o elemento central para entender esta questão é o que eu chamo de elitismo histórico.

Um aspecto fundamental para compreendê-lo é ter uma visão clara da pirâmide social brasileira. Em sua acepção mais real, ela é uma ilustre desconhecida. Segundo o World Inequality Report 2018, o País pode ser dividido em nove classes sociais :

– A, com 58 bilionários (R$ 650 bilhões);
– B, com 1430 pessoas que capitalizam a partir de R$ 5 milhões / mês;
– C, com 14300 pessoas que capitalizam a partir de (R$ 1 milhão / mês);
– D, com 142500 pessoas que capitalizam a partir de (R$ 188.925 / mês);
– E, com 1.4 milhão de pessoas que capitalizam a partir de (R$ 36.762 / mês);
– F, com 14 milhões de pessoas que capitalizam a partir de (R$ 7.425 / mês);
– G, com 57 milhões de pessoas que capitalizam a partir de (R$ 2.178 / mês);
– H, com 72 milhões de pessoas que capitalizam a partir de (R$ 1.122 / mês);
– I, com 23 milhões de pessoas que não têm renda (os ditos indigentes).

Apesar de existirem de forma oficial na literatura que estuda o tema as "classes D e E" – que correspondem na pirâmide mais realista às classes H e I – , a maior parte da população brasileira acredita que está, socioeconomicamente, posicionada entre o que foram intituladas "classes B e C" (na pirâmide realista, o equivalente às classes F e G). Como se vê, é uma visão algo distorcida, pois a classe mais numerosa na pirâmide realista é a H.

Ocorre que o maior nível de profusão, articulação e eloquência de peças de comunicação (televisão, rádio, revistas, livros, Internet etc.) e, portanto, da capacidade de fazer proselitismo em todas as direções e de controlar a narrativa política, encontra-se entre as classes A e F (menos de 16 milhões de brasileiros).

Não por acaso, em um encontro entre Moro e Fausto Silva, o apresentador da TV Globo assumidamente aconselhou os procuradores da Lava Jato a falarem de forma mais simples, para que todos entendessem.

Ele disse que vocês nas entrevistas ou nas coletivas precisam usar uma linguagem mais simples. Para todo mundo entender. Para o povão. Disse que transmitiria o recado. Conselho de quem está a (sic) 28/anos na TV. Pensem nisso.

Ex-juiz Sergio Moro, em mensagem ao procurador Deltan Dallagnol (Fonte: The Intercept)

O "povão" é formado pelos outros 152 milhões (classes G, H e I), que seguem o que os grupos de cima determinam. Já o topo da nossa pirâmide social é extremamente elitista, o que por sua vez também tem uma explicação científica, histórica e cultural.

Após quase quatrocentos anos de escravidão no Ocidente e pouco menos de cem anos depois de a Lei Áurea (1888) ser assinada no Brasil, mais precisamente, nas décadas de 1970 e 1980, duas tendências que ficaram conhecidas como "reducionismo biológico" e "determinismo genético" ganharam muita força entre as comunidades científicas norte-americana, britânica e europeia, em geral.

O intuito destas linhas de investigação era tentar explicar o ser humano utilizando parâmetros exclusivamente fisiológicos (reações químicas e físicas que acontecem no organismo humano) e, supostamente, predeterminados, sem levar em conta toda a complexidade das relações humanas e a importância dos ambientes culturais e sociais nos quais os indivíduos se desenvolvem.

Neste contexto, dois livros se destacaram, porque as suas teses transcenderam os muros das universidades e ganharam ressonância na cultura popular da época: The Selfish Gene (O Gene Egoísta), do biólogo britânico Richard Dawkins, e Sociobiology (Sociobiologia), do entomologista norte-americano Edward Osborne Wilson.

Essencialmente, o livro O Gene Egoísta sugere que o ser humano é produto dos seus genes. Portanto, de acordo com este raciocínio, tudo o que fizermos durante a vida (e a forma como nos constituímos como indivíduos) está predeterminado no nosso material genético.

O livro Sociobiologia foi um passo à frente no pré-determinismo. Nele, Wilson afirma que o comportamento dos seres humanos é determinado por aspectos biológicos e universais e que incluem a agressão, a dominação dos homens sobre as mulheres, o racismo e a homofobia, por exemplo, entre tantos outros padrões de comportamento que estão programados de forma irremediável nos nossos genes e não podem ser evitados.

Com base nestas ideias, formou-se uma das maiores polêmicas dos Estados Unidos, Inglaterra e França sobre o que ficou conhecido como "racismo científico", que era, falaciosamente, a afirmação de que os brancos são dominantes sobre os negros, porque os negros possuem uma inteligência geneticamente inferior aos brancos.

Apesar de totalmente desacreditadas pela ciência moderna em todo o planeta atualmente, uma vez estabelecidas, certas narrativas podem perdurar por muitas décadas até perderem a influência no senso comum. Exemplos não faltam. Precisamente por isso, como pré-candidato à Presidência da República, Jair Bolsonaro fez ataques de cunho racista, em tom de piada, contra negros durante um discurso no Clube Hebraica, no Rio de Janeiro, em abril de 2017.

"Eu fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador ele serve mais", disse o atual presidente do Brasil, que também afirmou que a sua filha nasceu mulher em virtude de uma "fraquejada" e que preferiria ver o próprio filho "morto em um acidente" caso ele fosse homossexual.

Este tipo de raciocínio, que ataca negros, gays e mulheres, é percebido como "humor", de forma natural ou como "brincadeira" por boa parte da população brasileira por conta das associações implícitas que permeiam toda a visão de como o mundo funciona (ou deve funcionar) segundo a visão do elitismo histórico.

Some-se a isso a já mencionada pirâmide brasileira. Com cerca de 15 milhões de pessoas que possuem este tipo de visão e uma força desproporcional quando se trata de convencer os outros 152 milhões, preconceitos como racismo, homofobia e discriminação social se materializam. O elitismo pode estar presente, também, na seletividade de seus alvos de combate à corrupção.

Desta forma, é pouco provável que os vazamentos do The Intercept de fato criem o nível de mobilização e indignação social que produziram os vazamentos de 2016 junto às massas, porque, agora, as classes A, B, C, D, E e F não têm o mesmo ímpeto político, coesão e apetite para combater a corrupção (e convencer o restante da população) que demonstraram há três anos contra o governo petista.

*Cesar Calejon é jornalista com especialização em Relações Internacionais e escritor, autor do livro "A Ascensão do Bolsonarismo no Brasil do Século XXI".

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