Com golden shower verbal, Bolsonaro abre base jurídica para impeachment
Entendendo Bolsonaro
30/07/2019 02h24
(Crédito: Reprodução/Facebook)
* Vinícius Rodrigues Vieira
Há pelo menos dez dias o presidente Jair Bolsonaro ligou a metralhadora verbal e não dá sinais de arrego, tornando café pequeno a publicação de um vídeo pornográfico no Carnaval passado.
Ofensa contra nordestinos, nepotismo explícito, ameaça de corte de verbas a governadores da oposição e defesa da tortura são alguns exemplos de uma clara escalada autoritária – um verdadeiro "golden shower" verbal que mancha a dignidade e a liturgia do cargo de presidente da República.
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Ao sugerir apoio à tortura enquanto se referia ao pai do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, em declaração nesta segunda (29), Bolsonaro quebrou o decoro que o seu cargo exige.
Na ocasião, o presidente da República criticava que a entidade não permitiu acesso a conversas de telefone entre o autor da facada que quase lhe tirou a vida em setembro passado, Adélio Bispo, e seus advogados.
Por que a OAB impediu que a Polícia Federal entrasse no telefone de um dos caríssimos advogados [do Adélio]… Um dia se o presidente da OAB [Felipe Santa Cruz] quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, eu conto para ele. Ele não vai querer ouvir a verdade. Eu conto para ele… O pai dele integrou a Ação Popular, o grupo mais sanguinário e violento da guerrilha lá de Pernambuco, e veio a desaparecer no Rio de Janeiro.
Jair Bolsonaro
Santa Cruz e OAB reagiram prontamente à fala. O presidente da entidade, inclusive, pretende ir ao STF para exigir que Bolsonaro esclareça o que sabe sobre a morte de seu pai.
Tamanha verborragia leva à pergunta inevitável: caberia pedir o impeachment do chefe de Estado e governo? "Sim" é a resposta que também inevitavelmente surge de leitura do artigo 9 da Lei 1079 de 1950, que regula o impedimento legal do presidente. Conforme aquele artigo define, entre os crimes de responsabilidade contra a probidade na administração está "…proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo" (inciso VII).
Mas cabe a pergunta: alguém vai cruzar o Rubicão e pedir o impedimento de um presidente que não completou sequer um ano de mandato num país que impichou dois dos quatro mandatários eleitos entre 1989 e 2016? Em reação à fala de Bolsonaro, o líder do PT na Câmara, deputado Paulo Pimenta, publicou em seu perfil no Twitter:
A fala de Pimenta, porém, deve morrer nas ondas concêntricas das redes sociais, onde, acima de tudo, se prega para convertidos num cenário de polarização extrema. Isso porque tanto à esquerda como à direita não interessa a saída de Bolsonaro neste momento.
Além disso, o vice Hamilton Mourão pode desestimular pedidos de impeachment. Não que ele não queira o posto titular, mas muitos não gostam do fato de ele ser militar, o que ecoa o regime de 1964.
Isto é, juridicamente o impeachment já é possível. Politicamente, não. Diversos pontos do espectro político aguardam ansiosamente 2022 para derrotar o presidente, o qual esperam que até lá sangre pela boca de tanto expressar posições reacionárias e por causa da estagnação econômica que o país vive.
Afinal, como nos ensina o professor Aníbal Pérez-Liñán no livro "Presidential impeachment and the new political instability in Latin America", publicado em 2007, impedir um presidente gera instabilidade – tudo aquilo que não precisamos caso queiramos retomar o crescimento econômico.
Ademais, o responsável por acolher e encaminhar eventuais pedidos de impeachment, o presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM-RJ), assumiu tamanho protagonismo político com a aprovação da reforma da Previdência em primeiro turno que, com o apoio do Centrão, vislumbra um parlamentarismo de facto.
Como primeiro-ministro informal, Maia pode tocar outras reformas (como a tributária), associar-se ainda mais ao empresariado e, assim, cacifar-se ao Planalto ou a vice numa chapa competitiva.
Ele, aliás, já é citado nos bastidores da política como potencial vice numa chapa a ser encabeçada pelo governador de São Paulo João Doria (PSDB). Já em campanha para se mostrar ao eleitor de direita mais moderado que Bolsonaro, Doria – cujo pai foi exilado pela ditadura militar – criticou prontamente a fala de Bolsonaro sobre o presidente da OAB, chamando-a de inaceitável.
Por fim, há um fator comum a todas as escaladas autoritárias bem-sucedidas: quando um número suficiente de setores da sociedade civil percebe que um país entrou na rota do autoritarismo, geralmente já é tarde demais para reagir. Isso porque àquela altura o governante autoritário já terá solapado as instituições e grupos capazes de conter a escalada, como, por exemplo, as universidades – locais de debate por excelência.
Ademais, tal governante também já terá formado um círculo de simpatias no Judiciário para referendar decisões de seu regime e proteger seus apoiadores. Nada resume essa lógica melhor que o famoso texto do teólogo protestante alemão Martin Niemöller (1892-1984), que diz:
Um dia, vieram e levaram meu vizinho, que era judeu. Como não sou judeu, não me incomodei. No dia seguinte, vieram e levaram meu outro vizinho, que era comunista. Como não sou comunista, não me incomodei. No terceiro dia, vieram e levaram meu vizinho católico. Como não sou católico, não me incomodei. No quarto dia, vieram e me levaram. Já não havia mais ninguém para reclamar.
Martin Niemöller
Coincidência ou não, Bolsonaro aplica um torniquete financeiro ao ensino superior, convocou sua própria marcha no fim de junho e já vê decisões judiciais controversas favoráveis a seu governo, como foi o caso da decisão pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) José Dias Toffoli de suspender investigações do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) que incluem movimentações suspeitas do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), filho mais velho do presidente.
Em março, após divulgar vídeo pornográfico em redes sociais com o suposto intuito de mostrar como o Carnaval desrespeita os valores de família, aventou-se a possibilidade de denunciar Bolsonaro por crime de responsabilidade. Um dos responsáveis por articular o pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff, o jurista Miguel Reale Jr., inclusive, citou que seria, sim, o caso de apresentar uma denúncia.
Quase cinco meses após o vídeo do "golden shower", não deixa de ser irônico que o banho de escatologia – agora diretamente jorrado sobre a democracia, as instituições e a sociedade civil – continue. Até quando?
Ulysses Guimarães dizia que "só o povo nas ruas mete medo em político". Não obstante interesses econômicos e políticos evidentes, foi o povo nas ruas que em última instância derrubou Fernando Collor de Melo (1992) e Dilma Rousseff (2016) graças à mobilização de grupos de esquerda e direita respectivamente contra o então inquilino do Planalto.
No momento, contudo, ninguém parece disposto a assumir protagonismo e/ou tem legitimidade suficiente para liderar protestos contra o presidente. À esquerda, falta legitimidade depois da recessão iniciada sob Dilma e os casos de corrupção envolvendo o PT.
À direita, os mais engajados estão fechados com Bolsonaro, quem, aliás, poderia reagir convocando uma nova marcha de seus apoiadores mais vorazes. Lula – é importante lembrar – adotou estratégia semelhante quando, no auge da crise do Mensalão (2005), reagiu a discussões sobre seu impeachment por parte do PSDB (principal partido de oposição à época), levando o tucanato a ser cauteloso e esperar que o então presidente não se reelegesse em 2006.
Não deu certo para os tucanos. Lula não somente se reelegeu como atingiu popularidade recorde no segundo mandato e o PT ficou no poder por mais dez anos. Terá destino igual Bolsonaro e seu outrora minúsculo PSL?
* Vinícius Rodrigues Vieira é professor visitante do Departamento de Relações Internacionais da USP.
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