O Lula que saiu da prisão ainda é um enigma
Entendendo Bolsonaro
12/11/2019 17h13
(Crédito: Henry Milleo/AFP)
*Rodrigo Ratier
A liberdade de Lula é positiva para o Brasil. Em termos de Justiça, anula, ainda provisória e parcialmente, os efeitos de um processo farsesco. Lula deve uma estátua a Glenn Greenwald, trombeteiro do que já era quase impossível esconder: a Lava Jato agiu como grupo político – braço mais evidente do Partido da Justiça, na expressão de André Singer –, tendo Sergio Moro como chefe e Jair Bolsonaro como principal beneficiário.
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Em termos democráticos, repõe, ainda provisória e parcialmente, voz à principal liderança progressista do país. Durante os 580 dias em que permaneceu preso, nenhum sucessor aproveitou, efetivamente, o silêncio forçado.
A comoção por sua libertação indica que Lula saiu de Curitiba maior do que entrou, conforme definiu Elio Gaspari. A paralisia anterior mostra que a esquerda nunca dependeu tanto de uma estrela solitária para brilhar.
O Lula que sai da prisão é também uma incógnita. As primeiras falas públicas, às portas da Polícia Federal em Curitiba e, no sábado passado, em São Bernardo do Campo, trazem o óbvio: baterias voltadas contra Jair Bolsonaro.
Já se exumou o equívoco que é tratar as duas figuras como extremos. Lula e o PT fizeram no máximo um governo de centro-esquerda, combinando políticas redistributivas com vida tranquila para o capital financeiro e eventual composição com velhas oligarquias.
Já o período Bolsonaro se apoia no tripé autoritarismo (a trinca militares-Moro-família Bolsonaro), fundamentalismo (Weintraub-Damares-Araújo) e ultraliberalismo (Tereza Cristina, Salles e sobretudo Guedes). Posicionado na extrema-direita, atrai críticas até de figuras como Doria e Huck.
O fato de ambos reivindicarem um posicionamento de centro só se justifica num debate público descalibrado à direita. Um centro "real", equidistante dos extremos do espectro político, seria vizinho de Lula e estaria a anos-luz de Bolsonaro. Assim, que o petista bata no quase ex-pesselista é uma não-notícia. Novidade seria se passasse um pano.
O resto ainda são dúvidas. Qual projeto de país Lula vai apresentar e defender daqui por diante? Nas caravanas antes de sua prisão, o ex-presidente priorizou o legado de seus mandatos, enfatizando a melhoria econômica das camadas pobres da população.
Ecos dessa posição apareceram no discurso do último sábado, quando o petista se disse pronto para lutar "para que o trabalhador possa ter o direito de ir a um cinema, de ir a um teatro, de ter um carro, de ter uma televisão, de ter um computador, de ter um celular, de ir num restaurante, e de poder, todo final de semana, reunir a família, fazer um churrasco, tomar uma cervejinha gelada".
A lista de exemplos se acomoda às representações de mundo do lulismo, entendido aqui como pacto social-conservador ou reformismo fraco, na definição de André Singer. É possível enxergar esse fenômeno político como uma faca de dois gumes: se por um lado conferiu condições de governabilidade a Lula, por outro, resultou em seu enfraquecimento.
A ênfase na inclusão pelo consumo teria sobrepujado as ideias de organização e mobilização popular. Estas se encontravam no nascimento do PT, gestado na confluência do sindicalismo, das comunidades eclesiais de base e das universidades públicas e confessionais.
Correndo o risco da simplificação, a opção lulista significou investir na inclusão sem "conscientização" – para definir melhor, sem o fortalecimento dos mecanismos de participação cidadã na política, do associativismo a experiências de orçamento participativo.
Se aceitarmos a definição de Vladmir Safatle para o pensamento de esquerda – combate a todas as formas de desigualdade somada à luta pela soberania popular –, teremos nas gestões Lula um esquerdismo "manco".
Quando deixa de ser um partido capilarizado na base para se transformar em máquina eleitoral, o PT consegue sucesso no curto prazo, mas acaba punido em contexto de crise por uma população que entende as conquistas recentes, do Bolsa Família ao acesso à universidade, como decorrências de seu próprio mérito – e não fruto de políticas públicas ou luta coletiva.
Lula dá pistas de que vê a mobilização social como central para o avanço da esquerda. Os atores privilegiados, porém, seguem os mesmos. "Eu tô disposto, junto com Haddad, com Freixo e com a Luciana, do PCdoB, com a Benedita, com a Gleisi, com dirigentes sindicais, a percorrer esse país", enumerou em São Bernardo.
Pôr em marcha a estratégia das caravanas pode ser estratégia viável eleitoralmente, mas é possível que a esquerda precise de mais do que ganhar eleições para sobreviver no longo termo.
Nos estratos mais baixos da pirâmide social, o vácuo deixado pelo refluxo dos sindicatos, CEBs e movimentos sociais tem sido ocupado pelas igrejas evangélicas e pelas mídias sociais. São elas que de fato estão presentes no dia a dia do povo.
Formas de ser, agir e pensar mais conservadoras e individualizantes – teologia da prosperidade, máquina bolsonarista de notícias falsas e/ou hiperpartidarizada etc. – circulam com mais desenvoltura e recorrência pelas camadas populares que as ideias que sustentam a esquerda.
O petista pede gente "formada no meio do povo brasileiro", mas hoje não é lá que a esquerda está. Conseguirão os atores tradicionais virar esse jogo? Lula indica a necessidade de algo mais ao pedir "a juventude nas ruas" e citando as pautas feminista, antirracista e LGBT. As condições e motivações para a participação dos jovens, porém, ainda carecem de contornos mais nítidos.
Conforme relata o Blog do Sakamoto, para MST e MTST, Lula será agora mais combativo, com menos conciliação com outros setores. Seria uma guinada em sua trajetória política. Desde os tempos de sindicalista, a negociação tem sido sua estratégia base.
A conjuntura nacional também é um entrave – a eleição de Bolsonaro evidencia o fortalecimento do conservadorismo liberal no país. Desde junho de 2013, a direita vem tendo sucesso em pautar o debate público, forçando a esquerda a uma pauta basicamente reativa.
Proposições clássicas do campo – reforma agrária, taxação de bancos, quebra de monopólios nas comunicações – enfrentarão o desafio adicional do agendamento do debate social no contexto mais adverso das últimas décadas.
Como se vê, o retorno de Lula ao xadrez político apresenta desafios de forma e conteúdo para que sua mensagem seja modulada e encontre condições de navegar – e seduzir – a opinião pública. Em São Bernardo, o ex-presidente prometeu um desenho mais definitivo num futuro "pronunciamento ao povo brasileiro", daqui 20 dias.
*Rodrigo Ratier é professor do curso de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero (SP), doutor em Educação pela USP e blogueiro do UOL.
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